Miséria: na rota do inferno

“A miséria como resultado
da injustiça é um inferno” – Francisco

Por Leomar Daroncho* no GGN

As impactantes imagens do cotidiano da fome, nas grandes cidades e nas terras do próspero agronegócio, revelam ao menos duas evidências da disfuncionalidade do nosso arranjo social: a inoperância das estruturas destinadas a efetivar os mais intuitivos direitos sociais, desafiados ao extremo – o direito à alimentação e à assistência aos desamparados estão listados no art. 6º da Constituição -; e a infame agilidade seletiva da repressão, cruelmente mobilizada contra os famintos.


A crise não se manifesta de forma igual para todos. Enquanto os mais ricos receberam estímulos e acumularam mais durante a pandemia , os mais vulneráveis tiveram dificultado o acesso a programas assistenciais. A fome e o desalento são consequências. A causa do flagelo está no escancaramento da opção política de precarizar empregos e sufocar a rede de proteção social, nutrindo a constrangedora desigualdade.


Especificamente em relação à regulação mínima do trabalho, a agravada crise estimula, uma vez mais, o falacioso discurso de que seria necessário flexibilizar direitos – “modernizar” e remover “muros” – para gerar empregos . Não há preocupação em estudar e aprender com os equívocos do passado recente. O simplório e desonesto discurso foi usado em 2017. O Resultado foi péssimo!


Há 13,7 milhões brasileiros buscando uma vaga, com a taxa de desemprego casa dos 14,1%. O IBGE mostra que a informalidade já atinge 41% da população ocupada. São postos precárias, sem direitos, sem INSS, com longas jornadas e ganhos incertos.


Oportuno lembrar a indagação do ex-Procurador Geral do Trabalho Ronaldo Fleury: “Reforma Trabalhista. Onde estão os prometidos empregos?” . Fleury expõe a farsa que embalou a Reforma Trabalhista de 2017, com previsões superestimadas de geração de 2 milhões, 5 milhões ou 6 milhões de empregos, sem nenhuma base, e em sentido contrário às conclusões da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que analisou impactos da flexibilização da legislação trabalhista em 62 países. Deve ser lembrado, sempre, que ninguém emprega mais só porque ficou mais barato contratar!


A generalização das ocupações precárias e o “empreendedorismo” de desesperados também prejudicam a economia. No trabalho por aplicativos, em que há notícias de jornadas de até 17 horas , já se anuncia a necessidade de dispositivo que impeça o trabalhador desesperado de dirigir por mais de 12 horas diárias.


Nesse contexto, é importante recuperar a origem, o contexto e os propósitos do Direito do Trabalho, que tem seu marco na tragédia humana e social da Revolução Industrial, especialmente na Inglaterra, na transição do século XIX para o século XX, como resposta aos exageros na exploração do trabalho, cenário de revoltas que ameaçaram a paz e a prosperidade capitalista.


Ao longo da Revolução Industrial, uma monarca destacou-se. A Rainha Vitória exerceu grande influência no Reino Unido, e no mundo, ao longo do seu reinado de 64 anos (1837-1901), dando nome a um período de grandes transformações econômicas, políticas, sociais e culturais: a Era Vitoriana.


Na biografia “Vitória, a Rainha”, Julia Baird esmiuça diários e cartas do período para apresentar a intimidade e o legado da monarca que esteve presente em ações como a Abolição da Escravidão no Império Britânico (1838); a redução das horas de trabalho na indústria têxtil para dez horas (1847); e no “Third Reform Act”- direito ao voto de todos os trabalhadores (1884). As leis revelam a precariedade da época: “Em 1833, a Lei Fabril vetou o emprego de crianças com menos de nove anos em fábricas têxteis. Em 1834, tornou-se proibido utilizar meninos com menos de dez anos como limpadores de chaminés”.


Os documentos revelam uma rainha curiosa com as desigualdades sociais, ressaltando a influência do primeiro-ministro Lord Melbourne (1834 -1841), que apesar de pertencer ao partido liberal (Whig) identificava-se com as ideias do partido conservador (Tory). Melbourne é lembrado por sua frase política preferida – “Por que não deixar como está?” -, comandando o Parlamento num período em que não se discutiam as causas da insatisfação com a desigualdade. O debate concentrava-se no “grau de repressão que era necessário para manter os trabalhadores descontentes – ou, com mais frequência, os desempregados – em seus devidos lugares”.


Lord Melbourne, que se notabilizou pela aversão aos pobres: “não gosto de nenhum dos pobres, mas aqueles que são pobres por sua própria culpa eu simplesmente detesto”; defendia que crianças deveriam trabalhar em vez de passar fome e que seriam infelizes se estudassem.


A literatura vitoriana – Oscar Wilde, George Eliot, Charles Dickens e as irmãs Brontë – é pródiga em retratar o auge do pensamento conservador e hipócrita, com a burguesia ostentando nas ruas de Londres, alheia ao duro cotidiano das crianças operárias e das famílias que morriam de tuberculose em casas insalubres.


A escritora Elizabeth Gaskell registrou em romances da Era Vitoriana o choque social da Revolução Industrial. Em Norte e Sul (1855), Gaskell, explora o contraste entre a Inglaterra industrializada, do Norte, e o Sul, rural. A narrativa dos conflitos entre patrões e empregados foi suavizada, pois sua elogiada obra anterior – Mary Barton – havia recebido algumas críticas pela “mórbida sensibilidade” na precisão da descrição das precárias condições de vida dos operários.
A fome e as péssimas condições de trabalho na tecelagem surgem nos diálogos da personagem Margareth com a operária Bessy, 19 anos, que adoecera, envenenada pela inalação da penugem de algodão – “pequenos pedacinhos que voam do algodão, quando a gente está cardando, e se espalham pelo ar como se fosse uma poeira branca” – que tomou seus pulmões.


Intrigada, Margareth indaga se isso não poderia ser evitado. Bessy então reponde que alguns patrões assumiam o alto custo de instalar uma roda (exaustor). E aí vem a revelação mais chocante. Operários não gostavam de trabalhar próximos à roda, pois sem engolir a penugem de algodão sentiam fome. Assim, para se alimentar adequadamente, exigiam um salário maior pelo trabalho próximo à roda, porém, fracassaram as negociações entre patrões e empregados sobre a indenização para o trabalho junto às rodas.


O diagnóstico da situação social da época, com a efervescência dos conflitos, preocupou o Papa Leão XIII que, na Encíclica Rerum Novarum (1891): sobre a condição dos operários ; criticou a insensibilidade com a miséria a que os trabalhadores estavam submetidos em razão do liberalismo irresponsável. Acusou os perigos para o próprio capitalismo:
“o problema não é sem perigos, porque não poucas vezes homens turbulentos e astuciosos procuram desvirtuar-lhe o sentido e aproveitam-no para excitar as multidões e fomentar desordens”.
A recuperação do contexto da época nos leva à criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1919, no Tratado de Versalhes, que pôs fim à Primeira Guerra Mundial. Num cenário capitalista, a Organização foi gestada pela preocupação de criar um ambiente propício à prosperidade que, por sua vez, viabilizaria a produção e os investimentos. A OIT surge do consenso quanto à convicção de que a paz universal e permanente somente pode estar baseada na justiça social,
Essa preocupação foi reafirmada pela OIT na década de 1940, tanto na Carta das Nações Unidas (1946) quanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Consolidaram-se, assim, quatro ideias fundamentais, que constituem valores e princípios básicos da OIT: I) o trabalho deve ser fonte de dignidade; II) o trabalho não é uma mercadoria; III) a pobreza, em qualquer lugar, é uma ameaça à prosperidade de todos e que todos têm o direito de perseguir o seu bem-estar material em condições de liberdade e dignidade; e IV) segurança econômica e igualdade de oportunidades.


O encaminhamento da crise humanitária, que ameaça o presente e o futuro, exige que a história seja revisitada. O Direito do Trabalho, com sua pauta de valores, está a serviço da ordem econômica vigente e é fruto de uma experiência social dolorosa, estabelecendo um piso civilizatório mínimo que interessa aos investidores e aos mercados.
A nossa longa e minuciosa Constituição utiliza apenas uma vez a expressão “primado”, e o faz afirmar que a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.


Em recente publicação no GGN, o Professor Cristiano Paixão analisa a nostalgia restauradora e as práticas desconstituintes de retorno ao passado , por meio da “sabotagem institucional” em temas constitucionais que expressam um projeto de futuro.


Paixão registra a supressão da dimensão prospectiva naquele que foi tantas vezes descrito como o “país do futuro, relacionando: o oportunismo da supressão de direitos sociais em meio à pandemia, por medida provisória; a desativação seletiva de instituições ligadas a vários campos da experiência social e política; e o avanço da agenda desconstituinte operando “por dentro”, com medidas administrativas, legislativas e/ou judiciais, sem submissão ao processo de reforma constitucional.


Num ensaio muito oportuno , defendendo a análise ecológica do Direito, o Professor Rodrigo Carelli evoca os estudos do economista David Card – agraciado com o Prêmio Nobel de 2021 – para assinalar a essencialidade da regulação do trabalho como forma de conservação das condições do planeta, assinalando que o “uso de contratos precários de trabalho e seu incentivo por leis, governos e tribunais podem ser defendidos por uma análise econômica do Direito tosca, que nega as consequências ecológicas-sociais”.


No início de outubro de 2021, manifestando-se aos participantes do Encontro da Pontifícia Academia das Ciências Sociais , o Papa Francisco condenou a injustiça, na gestão dos bens e dos frutos do trabalho dos seres humanos, e a avareza, que alimenta o sistema, alertando para o aumento maciço da pobreza e o incremento das desigualdades, que causa mal-estar social e generaliza o conflito, não só pondo em perigo a democracia, mas também debilitando o necessário arranjo social:
“A pobreza como privação do necessário — ou seja, a miséria — é socialmente, como viram claramente L. Bloy e Péguy, uma espécie de inferno, pois debilita a liberdade humana e coloca quantos sofrem na condição de ser vítimas das novas formas de escravidão (trabalho forçado, prostituição, tráfico de órgãos e outros) para poder sobreviver.”
As imagens da aparente resignação de seres humanos em situação de indigna miséria, sob viadutos e marquises de suntuosas corporações nas metrópoles ou na humilhante situação pedintes de restos e ossos, são um alerta.
A humanidade já experimentou o inferno da miséria resultante da cobiça desenfreada, do oportunismo e da insensibilidade social. A insatisfação generalizada mostrou-se uma ameaça à prosperidade e pode novamente colapsar as bases do sistema capitalista.


Está passando da hora de uma resolução que retire a sociedade da rota do inferno. Urge a necessidade de uma reflexão coletiva, e de ações, para a retomada da esperança na construção de uma realidade menos desigual, como impõe a nossa Constituição.


Como registrado pelo humor espirituoso e ácido do escritor vitoriano Oscar Wilde, “há uma fatalidade nas boas resoluções: são tomadas sempre demasiado tarde.” (O Retrato de Dorian Gray, 1890).

*Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e membro do Coletivo Transforma MP

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