Encarceramento e genocídio da juventude negra

A vida humana é o que menos importa para o Estado, mais importante é a defesa do patrimônio e a fracassada “guerra às drogas” (às pessoas).

Por Érika Puppim, no site Justificando.


Por que se fala tanto em “impunidade”, se temos a 4ª maior população carcerária do mundo e a maior taxa de aprisionamento entre os 4 países com maior população prisional, o que indica que em breve poderemos alcançar a 3ª posição.


Que o sistema prisional brasileiro está superlotado todo mundo já está cansado de saber. De acordo com o sistema GeoPresídios do CNJ, o Brasil conta atualmente com uma população carcerária de mais de 650.000 pessoas privadas de liberdade.

ENCARCERAMENTO E GENOCÍDIO DA JUVENTUDE NEGRA

Fonte: juventudescontraviolencia.org.br

Conforme o relatório Infopen de 2014, a taxa de ocupação dos presídios brasileiros está acima de 160% da sua capacidade e de 1990 a 2014, o aumento da população prisional foi de 575%, e ao contrário do que se espera, os apontadores de violência urbana e letalidade continuam altos.

Mas quem estamos prendendo e por quê? Por que se fala tanto em “impunidade”, se temos a 4ª maior população carcerária do mundo e a maior taxa de aprisionamento entre os 4 países com maior população prisional, o que indica que em breve poderemos alcançar a 3ª posição[1].

Analisando os crimes pelos quais os presos no Brasil estão sendo acusados[2] ou foram condenados, verifica-se que 35% se referem a crimes contra o patrimônio (roubo, furto e receptação)[3] e 27%, ou seja, quase 1/3 do efetivo carcerário responde por tráfico de drogas, resultando em 62% a soma desses tipos penais, consoante dados da pesquisa Infopen.

A ampla proporção do efetivo carcerário referente aos crimes contra patrimônio e ao comércio de substâncias consideradas ilícitas[4] poderia ser explicada por diversos fatores, dentre os quais dois se destacam.

O primeiro, em razão da maioria dos processos desses delitos decorrerem da prisão em flagrante, a qual torna mais simples a comprovação delitiva, eis que se apreende objetos que evidenciam a materialidade e a prova testemunhal, em especial a palavra do policial, é considerada a prova suficiente da autoria com presunção de veracidade, sendo despicienda qualquer investigação posterior.

O segundo pode ser creditado ao investimento cada vez maior em Polícia Militar ostensiva, até mesmo em convocação das Forças Armadas para realizar a função de polícia militarizada nas (favelas) ruas do Rio de Janeiro, aumentando as prisões em flagrante desses crimes, atendendo-se assim, aos clamores populares (do asfalto), gerando uma “ilusão de segurança”.

Apenas a título de exemplo, em 2016, a União injetou R$ 2,9 bilhões com o objetivo de auxiliar a Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro decorrentes dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos. Já na atual o “Operação Lei e Ordem”, o Governo Federal vai desembolsar cerca de R$ 700 milhões para apoiar ações de segurança no Rio.

“Deve-se ressaltar que não se trata de investimento qualitativo, em treinamento, capacitação, muito menos valorização e dignidade do policial militar, mas tão somente aumento do contingente.”

Em um levantamento de dados realizado pelo Jornal Extra, foi demonstrado que as operações das Forças Federais no Rio até hoje não foram garantia de redução da violência. Das 11 ações implementadas para reforçar a segurança no Estado nos últimos 25 anos, em apenas uma houve redução dos indicadores criminais analisados pelo jornal. Nas demais, pelo menos a metade dos índices observados piorou. Nos maiores eventos ocorridos nesse período — a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016 —, todos os crimes apresentaram aumento.

A despeito de todo investimento no projeto da ocupação militar das comunidades do Rio de Janeiro com as UPPs – Unidades de Polícia Pacificadora, iniciado de forma mais ampla a partir de 2010, foi constado pelo ISP-RJ que em 2016 o índice de letalidade violenta ultrapassou a série histórica do ano de 2010, o que pode vir a indicar o fracasso do projeto, associado à recente decisão da Secretaria de Segurança Pública de remanejamento de 1/3 do efetivo dos policiais das UPP’s para patrulhamento nas ruas.

Apesar dos resultados fracassados dessa política, para atender de forma demagógica aos anseios de parte da sociedade pautada pelo medo, insuflado pela mídia, clamando por mais controle e vigilância, é que o Governo do Estado do Rio de Janeiro teve em 2016 um orçamento maior em Segurança do que em Educação, gerando lucros à indústria ligada à segurança e agradando aos setores que não dependem de educação pública.

Em que pese toda essa suposta busca por “segurança”, com elevado investimento na área repressiva das forças de segurança, o Brasil registrou em 2015, 59.080 homicídios conforme pesquisa “Atlas da Violência” produzida pelo IPEA. No entanto, apenas 14% da nossa hipertrofiada massa prisional é condenada por crime de homicídio[5], confirmando-se o clichê de que “o Brasil prende muito e prende mal”.

Essa diminuta proporção de presos por homicídios, apesar do número alarmante de assassinatos no país, decorre da baixíssima taxa de elucidação de homicídios, que fica entre 5% e 8%, conforme pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Criminalística em 2011.

É notório que para se comprovar a autoria de crimes de homicídio são necessárias investigação adequada, inteligência, provas técnicas, ou seja, uma Polícia Civil estruturada, tanto em recursos materiais quanto em recursos humanos, em especial seu corpo técnico de peritos. Assim, ante a falta de interesse em se investir nessa área, tais delitos acabam simplesmente não sendo apurados.

Em recente levantamento realizado pelo jornal “The Intercept Brasil” nos relatórios de contas consolidadas do Governo Estadual, foi constatado que os gastos com a função “informação e inteligência” caminharam de valores ínfimos até simplesmente chegarem a zero no ano de 2016.

O que se conclui desses dados é que a vida humana é o que menos importa para o Estado, sendo mais importante a defesa do patrimônio e a fracassada “guerra às drogas” (às pessoas).

“Mas que “vidas” são essas que menos importam? A mesma pesquisa do IPEA revela que o perfil típico das vítimas fatais no Brasil é de homens, jovens, negros e com baixa escolaridade.”

“Coincidentemente” é exatamente esse o perfil das pessoas privadas de liberdade, conforme consta da apresentação do Relatório INFOPEN: “Os problemas no sistema penitenciário que se concretizam em nosso país, devem nos conduzir a profundas reflexões, sobretudo em uma conjuntura em que o perfil das pessoas presas é majoritariamente de jovens negros, de baixa escolaridade e de baixa renda.”

Verifica-se que é o mesmo perfil populacional que está sendo encarcerado e que está sendo assassinado no Brasil, sem que o Estado demonstre muito interesse em averiguar esses crimes. Parece, portanto, que o projeto está sendo muito bem sucedido, afinal.

Érika Puppim é promotora de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e Membro do Coletivo Transforma MP.


[1] Ibidem, p.14/15. “Desde 2008, os Estados Unidos, a China e, principalmente, a Rússia, estão reduzindo seu ritmo de encarceramento, ao passo que o Brasil vem acelerando o ritmo. Mantida essa tendência, pode-se projetar que a população privada de liberdade do Brasil ultrapassará a da Rússia em 2018.”

[2] A proporção de presos provisórios no Brasil é de 40%, conforme Relatório INFOPEN, jun/2014. Ibidem.

[3] Em crimes contra o patrimônio, não se inclui o latrocínio (roubo seguido de morte,) que segundo o INFOPEN/2014, corresponde a ínfimos 3% da população prisional. Ibidem.

[4] Um outro fator seria a ampla discricionariedade na tipificação da conduta do tráfico em contraposição à de usuário de drogas. Segundo pesquisa do ISP-RJ, a média de 2016 de quantidade de maconha por apreensão foi 14g e de cocaína foi de 23g: http://arquivos.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/uploads/RelatorioDrogas2016.pdf Acesso em 27 de Agosto de 2017.

[5] Mais uma vez relatório INFOPEN, jun. 2014. Ibidem

 

 

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