Desproteção à infância, a revelação nítida de uma alma perversa

Por Elisiane dos Santos e Margaret Matos de Carvalho, na CartaCapital.

Não há revelação mais nítida da alma de uma sociedade do que a forma como ela trata suas crianças.

Os ensinamentos traduzidos na frase acima, de autoria do líder político Nelson Mandela, nos fazem refletir nesse 18 de Maio – Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes – sobre o caminho percorrido e o lugar em que chegamos na defesa dos direitos e proteção da infância.

Ao longo de duas décadas, o Brasil, através da ação de órgãos, instituições, governos, sociedade civil, envidou esforços na efetivação de políticas públicas para o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes.

No ano 2000, foi instituído o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (Lei 9.970/2000)[1] e criado o Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual, vinculado à então Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Como primeiras medidas houve elaboração e aprovação do Plano Nacional de Enfretamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes.

Em consonância com o Plano, no ano 2007, foi constituída a Comissão Intersetorial de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes.[2] Com a participação de representações da sociedade civil, órgãos de defesa de direitos, órgãos de segurança pública, Ministérios Públicos, organizações não governamentais, organismos internacionais, e inclusive crianças e adolescentes em conferências regionais e nacionais, a Comissão e o Comitê construíram estratégias para o enfrentamento e prevenção ao abuso e exploração sexual infantil.

Destacam-se o fortalecimento das redes locais/estaduais; a adoção de códigos de conduta contra exploração sexual por segmentos econômicos empresariais; a criação do serviço de disque denúncia nacional gratuito – Disque 100; o mapeamento de pontos vulneráveis de exploração sexual de crianças e adolescentes (Projeto Mapear da PRF); campanhas de alerta à sociedade, estimulando denúncias; material educativo, orientações e capacitação de educadores, assistentes sociais, integrantes da rede de proteção, bem como crianças e adolescentes sobre direitos e prevenção à violência. Destaque-se, ainda, no ano 2008, a realização do III Congresso Mundial de Enfrentamento da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes no Brasil.

A partir do disque denúncia, ações em rede puderam ser implementadas para o enfrentamento do problema. Nos anos 2012 a 2016[3], houve registro de 175 mil casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. No ano 2017, o Disque 100 divulgou o total de 20.330 denúncias, o que corresponde a mais de duas crianças violentadas por hora no Brasil. A maior parte das vítimas possui entre 0 e 11 anos (40%), seguidas da faixa etária de 12 a 14 (30,3%) e 15 a 17 anos (20,09%). Em sua maioria são meninas, pretas e pardas.

Os números abrangem casos de abuso e também exploração sexual comercial, formas distintas de violência. A primeira caracteriza-se por práticas sexuais com crianças e adolescentes, envolvendo ou não contato físico, sem o pagamento de dinheiro ou gratificação. A segunda é caracterizada pela prática sexual, por adultos, com crianças ou adolescentes mediante pagamento em dinheiro ou qualquer outro benefício. Pode ser dar através de pornografia, tráfico de pessoas e também através de agências de turismo (formas mais comuns). Expostas ao abuso de poder, forçadas a práticas sexuais com adultos, mediante contraprestação pecuniária (exploração) ou não (abuso), crianças sofrem danos físicos, psicológicos e sociais, muitas vezes irreversíveis.

Normalmente os crimes são praticados por pessoas próximas, às vezes integrantes da família, especialmente nos casos de abuso sexual. Daí a importância das políticas educacionais e de saúde que tratem da sexualidade, com orientações às famílias e às crianças e adolescentes, como medidas de prevenção e estímulo a denúncias. Além disso, a responsabilização dos agressores, estabelecimentos e agenciadores que participam de esquemas de tráfico, turismo e exploração sexual, o combate à cultura do estupro e ao machismo estrutural são ações fundamentais.

Nesse sentido, o endurecimento das Lei que punem tais crimes também foram objeto de ação na proteção de crianças e adolescentes. Abuso, violência e exploração sexual infanto-juvenil são tipificados como crimes de corrupção de menores (art. 218) e atentado violento ao pudor (art.214), caracterizado por violência física ou grave ameaça. O abuso sexual de meninas e meninos inclui a corrupção de menores, o atentado violento ao pudor e o estupro (art. 213). Com a Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, o estupro e o atentado violento ao pudor passaram a ser considerados crimes hediondos e tiveram as penas aumentadas. Os autores de crimes hediondos não têm direito a fiança, indulto ou diminuição de pena por bom comportamento. O Estatuto da Criança e Adolescente também prevê tipos penais específicos nos artigos 240 e 241 relacionados a essas práticas[4].

Além da mudança legislativa citada acima, outros projetos discutidos ao longo dos anos culminaram com a edição de três novas leis, prevendo medidas importantes no enfrentamento da questão. A Lei nº 13.440 /2017, que estipula pena obrigatória de perda de bens e valores em razão da prática dos crimes tipificados como exploração sexual; a Lei nº 13.441/2017, que prevê a infiltração de agentes de polícia na internet com o fim de investigar crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes. E a Lei nº 13.431/2017, que estabelece o depoimento pessoal para crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.

Não obstante os avanços em períodos de diferentes governos, na contramão do trabalho coletivo de pelo menos duas décadas, o atual governo, sem qualquer constrangimento, revela nitidamente sua alma perversa, desconstruindo as estratégias de prevenção ao abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes, a começar pela naturalização da violência, mediante discurso que reforça tabus e desconhecimento acerca da sexualidade, além de falas misóginas que reforçam o estereótipo de mulheres como objeto sexual, e, em decorrência o turismo sexual e a cultura do estupro.

É o que se observa da proibição de conteúdo educativo no sistema único de saúde, conforme declaração de Jair Bolsonaro em entrevista no dia 07/03/2019, na qual anuncia a retirada de informações sobre educação sexual da “Caderneta de Saúde do Adolescente”, impressa pelo Ministério da Saúde, direcionada a meninas e meninos entre 10 e 19 anos. E ainda conclama às famílias que rasguem as páginas da cartilha com ilustrações tidas por ele como inadequadas.[5]

Essas condutas trazem graves consequências, ao colocar em risco milhares de crianças brasileiras, que não terão asseguradas direito à informação e à educação, aumentando sua vulnerabilidade à violência sexual, num país que registra o número assustador de mais de duas crianças vítimas de violência sexual, por hora.

A par disso, a extinção de comissões estratégicas, por meio do Decreto 9.759/2019, como a CONAETI – Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, a CONATRAE – Comissão Nacional para a Erradicação ao Trabalho Escravo e o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua, impactará nas ações de enfrentamento às violências sexuais praticadas contra crianças e adolescentes.

Cuidam-se de espaços de discussão e deliberação que reúnem representações da sociedade civil, trabalhadores, empregadores e governos com vistas à elaboração de diretrizes, planos de ação e monitoramento para as políticas públicas no que diz respeito as formas análogas à escravidão e ao trabalho infantil nas ruas, associados diretamente à exploração sexual comercial, sendo esta violência também caracterizada como uma das piores formas de trabalho infantil (Convenção 182 da OIT e Decreto 6481/2008).

Como se isso não bastasse para a desestruturação das políticas de prevenção às violências praticadas contra crianças e adolescentes, no último dia 25/04/2019, o Presidente da República declarou publicamente em mensagem aos turistas, referindo-se de forma preconceituosa à população LGBTI+, “quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”.

Tal afirmação, a par da violência simbólica e institucional contra as mulheres, produz efeitos nefastos no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes. Estatísticas revelam que o turismo e o tráfico internacional de pessoas têm como principais alvos mulheres e meninas, tendo o aliciamento o objetivo de exploração sexual, trabalho escravo, tráfico de órgãos, dentre outras diversas hipóteses. De acordo com o Escritório da Organização das Nações Unidas (ONU) para Drogas e Crime (UNODC), as mulheres e meninas representam entre 55 e 60% das vítimas.

Ao longo dos anos, o MPT realiza campanhas de sensibilização[6], em parceria com a Infraero, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, especialmente em aeroportos, rodoviárias, rodovias, advertindo turistas e pessoas em geral para a proibição e consequências da exploração sexual de crianças no país, bem como seus efeitos perversos.

Tais ações preventivas são imprescindíveis para o enfrentamento desta grave violação de direitos humanos, além das ações repressivas visando à responsabilização dos agressores, aliciadoras, empresas que agenciam, hospedam, compartilham dados, integram redes de tráfico ou de alguma forma participam ou facilitam os crimes de abuso e exploração sexual.

Importante dizer que o armamento da população em nada contribui para o enfrentamento de tais violações de direitos. Ao revés, o Decreto 9.785/2018, publicado no último dia 08 de maio, que permite a utilização de armas por crianças e adolescentes para prática em clubes de tiro, bem assim facilita o seu uso a pessoas que deveriam atuar no cuidado e atenção de crianças vítimas de violência, como os Conselheiros Tutelares, pode trazer a todo o sistema de proteção à infância consequências graves. Estudos apontam que o aumento do número de armas pode levar ao aumento dos índices de criminalidade e violência.[7]

O desmantelamento de órgãos, comissões, que atuam na defesa de direitos, a desconstrução das políticas de educação em direitos humanos, a utilização de discursos que reforçam preconceitos, estigmas, comportamentos machistas, discriminatórios, causas estruturais de violência contra mulheres, crianças e adolescentes, importam em não efetivação dos princípios fundamentais consagrados no texto constitucional sob os quais se assenta o Estado Democrático de Direito, especialmente os princípios da proteção integral e prioridade absoluta insculpidos no artigo 227[8], também consagrados no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Ainda que o Presidente da República possa intimamente discordar de valores republicanos, democráticos e de direitos humanos (ou ignorá-los), está ele submetido aos princípios afirmados pela sociedade brasileira como fundamentais na Constituição da República Federativa do Brasil, a qual deve dar cumprimento, sob pena inclusive de apuração de responsabilidades.

A perversidade de um governo eleito por parcela da população não pode destruir a alma da sociedade brasileira.

É preciso reagir!

Elisiane dos Santos é Procuradora do Trabalho. Membra do Coletivo Transforma MP. Coordenadora do Fórum de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Vice Coordenadora da Coordenadoria de Promoção da Igualdade no MPT em São Paulo. Mestra em Filosofia pelo IEB-USP.

Margaret Matos de Carvalho é Procuradora Regional do Trabalho. Membra do Coletivo Transforma MP.


[1] A data foi instituída em memória de Araceli, menina de 8 anos, violentada e assassinada brutalmente, na década de 70, por jovens da alta sociedade capixaba. O crime ficou impune e chocou a sociedade brasileira. Assim como ela, tantas outras vítimas integram as estatísticas de violência sexual. E quando não têm suas vidas ceifadas, amargam traumas físicos, psicológicos e sociais, na maioria das vezes irreversíveis.

[2] Como representantes da Coordinfância – Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes tivemos a oportunidade de participar e contribuir com os planos de ação elaborados pela Comissão Intersetorial nos anos 2014-2016.

[3] http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-04/disque-100-registra-142-mil-denuncias-de-violacoes-em-2017

[4] http://www.turminha.mpf.mp.br/direitos-das-criancas/18-de-maio/copy_of_a-lei-garante-a-protecao-contra-o-abuso-e-a-exploracao-sexual

[5] “Durante a live, o presidente exibiu desenhos da cartilha que explicam como usar e descartar a camisinha masculina e como as adolescentes devem manipular a camisinha feminina. Bolsonaro também mostrou para a câmera um desenho da genitália feminina mostrando suas divisões, acompanhada de um texto que detalha como deve ser feita sua higiene íntima. Bolsonaro ainda criticou as páginas da cartilha que falam sobre a descoberta da sexualidade na adolescência e destacou que o material foi produzido pelo “governo Dilma Rousseff e foi impresso ’em grande quantidade'”.

 (https://www.redebrasilatual.com.br/saude/2019/03/bolsonaro-moralista-anuncia-retirada-de-cartilha-que-orienta-sobre-saude-sexual-de-adolescentes)

[6] https://mpt-prt15.jusbrasil.com.br/noticias/2682992/mpt-e-forum-paulista-lancam-campanha-estadual-contra-a-exploracao-sexual-infantil

[7] http://thomasvconti.com.br/2017/dossie-armas-violencia-e-crimes-o-que-nos-dizem-61-pesquisas-recentes/

[8] É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010).

Foto: OIT/Truong Huu Hung

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