Constituição sem povo e o medo da democracia

Publicado no site Jota.

Quando nos aproximamos da data de comemoração dos 30 anos da Constituição da República, somos confrontados com uma proposta formulada por um dos candidatos à vice-presidência: o Brasil necessitaria de uma nova constituição, a ser redigida por uma “comissão de notáveis”. Afinal de contas, segundo o candidato, “uma Constituição não precisa ser feita por eleitos pelo povo”. O contraponto com a especificidade histórica que marca a abertura e o pluralismo do processo constituinte participativo que regeu a elaboração da Constituição de 1988 é, a um só tempo, evidente e radical.

A proposta parece totalmente descabida e ecoa um horizonte de autoritarismo que se acreditava não mais plausível. Mas ela não é nova. Ela é, ao contrário, contumaz em sua recorrência. Investigar suas origens nos ajudará a compreender alguns dos elementos centrais de uma espécie de “constitucionalismo autoritário” brasileiro pós-1988, marcado, antes de tudo, por um viés elitista e contrário aos “excessos” da Constituição. Um episódio é bastante ilustrativo dessa postura autoritária.

Em 2003, o então deputado Luís Carlos Santos apresentou a PEC 157. Ela visava à convocação de uma assembleia destinada a realizar uma ampla revisão na Constituição de 1988. Quando a PEC foi encaminhada à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, o relator redigiu parecer pela sua admissibilidade. Mas ele não fez apenas isso. O então relator apresentou um substitutivo, dando novos contornos à proposta, e apresentando razões doutrinárias que justificariam a inserção, no texto constitucional, de um procedimento de revisão que não havia sido previsto na Constituição de 1988.

Que razões são essas?

O substitutivo invoca a obra do constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que sempre foi um crítico dos procedimentos, decisões e resultados da Constituinte de 1987-1988. Num trecho decisivo, vem à tona o argumento de que a Constituição conduz à ingovernabilidade – palavra de ordem dos setores mais conservadores no processo constituinte. Para solucionar essa “anomalia”, Manoel Gonçalves, adotado pelo relator, sugere: basta convocar uma Assembleia Constituinte, para que uma nova Constituição seja redigida. Mas desta vez, adverte o autor, “sejam os mais sábios os incumbidos de estabelecê-la”.

Fica clara, portanto, a atitude autoritária travestida de um certo elitismo antidemocrático, e, portanto, efetivamente bem pouco constitucional. Segundo a concepção invocada pelo relator, uma boa Constituição é aquela redigida pelos mais sábios, pelos instruídos representantes de uma sociedade ilustrada. Felizmente, a PEC 157 nunca foi aprovada em Plenário. Está hoje apensada a uma série de outras propostas similares, que visavam a ampliar a forma de modificar a constituição, algo visivelmente inconstitucional, pois, como se sabe, cabe ao poder constituinte originário – e não ao derivado – estabelecer as formas e procedimentos para alteração do texto constitucional. No caso do Brasil, tendo sido já esgotada a única revisão constitucional prevista no texto, resta o caminho da emenda constitucional.

Uma questão sobre a PEC 157, contudo, é reveladora. Quem foi o autor do substitutivo aqui citado? Quem foi o responsável por invocar a obra de Manoel Gonçalves Ferreira Filho?

Foi o então deputado Michel Temer.

Constituição de 1988. Significado histórico.

A Constituição de 1988, promulgada após 25 anos de ditadura civil-militar, pela assembleia constituinte mais participativa e democrática da história constitucional brasileira, assume o desafio de criar um Estado Democrático de Direito, fundado na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, na garantia do exercício dos direitos fundamentais e no pluralismo político. Todo poder emana do povo que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, cujos objetivos consistem em construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, bem como promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, em face da memória de um passado-presente de opressão, de exclusão e de lutas políticas e sociais.

Trata-se de uma Constituição tantas vezes criticada como “analítica”, “ingovernável”, “irrealista”, “ultrapassada” e “sempre em crise”, e não apenas por parte dos ex-integrantes do regime autoritário com o qual ela procurou romper. Hoje ela coloca, mais uma vez, após 30 anos de sua promulgação, em meio a uma disputa permanente entre narrativas sobre o seu sentido constituinte e constitucionalista, a pergunta acerca do que, de lá para cá, se construiu social e politicamente com base nela.

Assim, há narrativas em disputa sobre o sentido de Constituição brasileira que perpassaram as últimas décadas, provocadas, por um lado, pela exigência, por parte da sociedade e do Estado, de se posicionarem em relação a um passado pré-constitucional que se faz ainda presente e que teima em não passar, a fim de se romper com tradições autoritárias, ao mesmo tempo, resgatando as tradições democráticas na história; e, por outro, pela exigência de se enfrentarem os desafios de um futuro que se já faz presente, em razão dos problemas sociais, econômicos, culturais que se colocam para uma sociedade de massas, acelerada e cada vez mais complexa, num contexto globalizado.

Conclusão: o medo do povo

Diante das narrativas em disputa, não importando quão conceitualmente frágeis e pouco consistentes possam ressoar aquelas leituras marcadas pelo elitismo e pelo autoritarismo saudosista de nossa história institucional, é importante reconhecer, de plano, que o retrocesso constitucional é um risco permanente a ser enfrentado.

É impressionante a distância social entre a comunidade de princípios que se inaugurou pela adoção do texto constitucional em 1988 e a que nessas três décadas, sob a sua égide, vem se afirmando e se reafirmando como povo, como conjunto de titulares de direitos, a desvelar uma comunidade de princípios cada vez mais inclusiva, plural, rica e complexa. A igualdade – constitucionalmente compreendida como direito à diferença – vem assegurando a luta pelo reconhecimento de forma cada vez mais penetrante, profunda e plural às diferenças até então hierarquizadas e naturalizadas como subalternas. No mínimo nesse campo, na seara das minorias sociais, temos muito a comemorar.

Cabe concluir, então, com uma reflexão sobre o povo – e sua ausência do processo constituinte, que é o desejo do candidato a vice-presidente. Não é difícil perceber, na proposta de uma constituinte feita por uma “comissão de notáveis”, aquilo que já foi chamado por um jurista europeu de “constitucionalismo do medo”. No caso, medo do povo.

Em sociedades complexas como a contemporânea, a função dos “sábios” é a de observar, de forma articulada e coerente, os limites e possibilidades que a própria sociedade estabelece. Por mais indesejável que isso possa parecer, o povo é o detentor final da soberania (ainda que de forma simbólica, representativa, fragmentária, discursiva). O povo, em toda a sua complexidade, abertura e pluralismo, não pode mais ser visto como totalidade a ser apropriada pelo Estado ou pelo governante, mesmo sob a intermediação de “sábios” ou “notáveis”. Também aqui, vemos a atualidade das reivindicações que marcaram as lutas por uma constituição democrática. Como se dizia na década de 1980, e como deve ser reiterado nos dias de hoje, “Constituinte sem povo não produz nada de novo”.

*O presente artigo está incluído em uma série dedicada aos 30 anos da Constituição de 1988. Este espaço é compartilhado por professores e pesquisadores integrantes do grupo de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” (UnB – Programa de Pós-Graduação em Direito, Estado e Constituição), por componentes do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC) e por pesquisadores convidados.


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