Brasil, um país singular

Por Rômulo de Moreira Andrade, no Empório do Direito¹

O Brasil, definitivamente, é um País singular. Eu diria, deliciosamente único. Ímpar! Nas Américas, por exemplo, somos os únicos cuja pátria é o português, como diria Pessoa.

Aqui, também para exemplificar esta individualidade somente nossa, setores da esquerda, da direita, da ultradireita, os conservadores, também a Igreja, todos têm – uns mais outros menos – uma ânsia punitivista de amargurar.

Nada mais significativo, neste aspecto, do que o fato de termos escolhido para nos governar algumas figuras com uma pauta, antes mais que conservadora, propriamente retrógada.

A quase totalidade dos candidatos nas últimas eleições pautaram as suas propostas rigorosamente por esse caminho (o do retrocesso). E, como se viu após a abertura das urnas e a contagem dos votos, eles estavam na direção certa, desde um ponto de vista do populismo punitivista.

Óbvio que este discurso agrada a quase todos, dos gregos aos troianos (como na mitologia), o que se provou exatamente nas eleições passadas. Nos mais diversos programas de governo constavam – quase em todos! – promessas de endurecimento das leis penais (incluindo as de processo penal).

O discurso é de todo sedutor, pois, como é de uma obviedade ululante (perdoem a redundância), todos queremos viver em uma comunidade segura, e em paz. Quem não o deseja? Acontece que as coisas não são assim tão fáceis, tampouco ocorrem exatamente da maneira como gostaríamos que o fosse. A questão não é simples, logo soluções ingênuas não irão resolvê-la.

É o que se passa com as mais variadas formas de violência, especialmente aquela que atinge áreas urbanas, e mais particularmente ainda, as esferas dos espaços que são mais vulneráveis, posto esquecidas pelo poder público.

Fala-se, então – com um desconhecimento que beira a ignorância proposital -, em uma legislação penal mais atual, eficiente e que, efetivamente, sirva para “combater” a violência (como se de um combate se tratasse…).

Esconde-se, dentre outros aspectos, que temos uma legislação processual penal forjada desde um ponto de vista autoritário e mesmo fascista, feito à mercê de uma Constituição extraparlamentar e concebida em um contexto sabidamente de exceção. Refiro-me à Constituição de 1937 e ao período do Estado Novo.

Uma legislação dura, portanto. E quase não houve mudanças. As que houve, especialmente no ano de 2008, de tão ruins (no geral) pioraram ainda mais o nosso Código de Processo Penal, especialmente porque não adotaram o princípio acusatório. Aliás, nem poderiam, posto reformas parciais. E mudanças “por partes”, evidentemente não modificam nada, antes pelo contrário, confundem tudo!

Não deu outra! Vencedores agora querem cumprir os seus compromissos, mesmo porque os eleitores vão, logo, logo, “apresentar a fatura”, como sói acontecer. Eis uma das razões – há outras! – pelas quais não houve para mim surpresa nas propostas apresentadas à sociedade civil (e aos militares também) pelo atual Ministro da Justiça.

Obviamente que ele está a serviço de um governo como ideias gravemente comprometidas (unicamente) com a repressão. E quando se está de uma tal maneira assim compromissado, abre-se pouco espaço para um diálogo civilizado e humanizado.

Em uma visão como esta, vê-se inimigos a serem perseguidos, combatidos, destruídos, aniquilados, etc. Aqui não se está a tratar – simploriamente – de impunidade. Ninguém quer a impunidade, tampouco se é “bandidólatra”. Que mentira mais deslavada!

É preciso cumprir a lei, mas é preciso que a lei cumpra a Constituição. Mas, mais é preciso também: é necessário que o Poder Judiciário assegure o cumprimento da Constituição, rechaçando toda e qualquer tentativa espúria de corrompê-la, ignorá-la, rasurá-la, destrui-la, enfim.

A nossa Constituição é fruto do trabalho de uma Assembleia Constituinte formada por representantes do povo, que elegeram, com eles, valores, princípios e regras que deveriam ser, doravante, obedecidos pelo Estado brasileiro. Não havia espaço, portanto, para tergiversações. Era o que imaginávamos, inocentemente. Estávamos todos enganados, como se vê.

O retrocesso está aqui, em nossa frente, comandado – o que é pior – por gente que foi eleita democraticamente e que, exatamente por isso, tem uma respeitável legitimidade direta. E o mais dramático: eles reagiram!

Tal fato torna extremamente difícil uma ação, contra a reação. Mas, como sempre se diz, o difícil nem sempre é impossível de acontecer.

Eis, portanto, o que resta a nós do direito criminal: agir! Agir significa, sobretudo, denunciar os fariseus que pululam por aí (inclusive alguns na própria academia). Agir é esclarecer, a partir de suas possibilidades e dos seus espaços, que não se encontrará a paz e o sossego desde o ódio, muitíssimo pelo contrário. Neste aspecto, sou forçado a repetir um lugar-comum: violência gera violência.

E o que é mais desalentador quanto mais grave: a violência a que me refiro (como geradora de mais violência) é aquela que vem praticada e incentivada pelo próprio Estado. É desolador!

De toda maneira, e afinal de contas, a minha esperança é que do caos surja a luz, pois, como falou Zaratustra, “é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela dançarina.[2]

Esperemos, então, a “estrela dançarina”, mas o façamos não como meros expectadores. Façamo-lo como protagonistas de um novo tempo.

Oxalá!


[1] Este texto foi publicado originalmente no 1º. Boletim do Instituto Baiano de Direito Processual Penal – IBADPP (março/2019), na coluna “Ponto e Contraponto”.

[2] NIETZSHE, Friedrich, “Assim Falou Zaratustra”, São Paulo: Editora Martin Claret Ltda., 2008, p. 29.

 

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