A Justiça do Trabalho “não deveria nem existir”?

Nada é tão ruim que não possa piorar, diz a sabedoria popular que mais uma vez se mostra precisa. Até aqui a preocupação que se tinha com os ataques ao sistema de proteção social do trabalhador, especialmente pelas ditas “reformas” trabalhista e previdenciária propostas pelo Governo Federal, dizia respeito a mudanças de leis, ao retrocesso de direitos, com o ordenamento jurídico.

Coube ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, levar a questão a um outro patamar com suas declarações sobre a reforma trabalhista na linha do “eu acho é pouco”. Agora é uma pegada Estado Islâmico, já que não basta destruir os pilares do Direito do Trabalho: a Justiça do Trabalho, segundo ele, “não deveria nem existir”. Parece ser preciso varrer qualquer vestígio de nosso modelo de Estado Social de Direito consagrado pela Constituição de 1988, transformando o estado atual do nosso sistema de proteção social e garantia de direitos em uma Aleppo.

A Justiça do Trabalho "não deveria nem existir"?

A Justiça do Trabalho “não deveria nem existir”?

O presidente da Câmara, a quem, curiosamente, alguns articulistas se referem pelo nome de um clube de futebol (Botafogo) por razões não muito desportivas, foi a estrela solitária da semana e não parou por aí: em uma tirada que faria o assessor de imprensa de Trump corar de rubor, parece que quis entrar pesado na onda da “pós-verdade” e dos “fatos alternativos” para dizer que “o setor de serviço e de alimentação quebrou pela irresponsabilidade da Justiça do Trabalho no Rio de Janeiro”. Então deve ser por causa dessa mesma Justiça do Trabalho que o Governo do Estado do Rio de Janeiro não tem dinheiro nem para pagar salários! Nada a ver com crise econômica, especialmente na indústria do petróleo. Tudo culpa da Justiça do Trabalho, assim como o aquecimento global, o Brexit e as crueldades de Ramsay Bolton em Game of Thrones.

Em outra oportunidade, no exercício de seu mandato parlamentar, o deputado já havia dito que deveria haver uma PEC para extinguir essa “excrescência”, a Justiça do Trabalho. Não é uma maneira muito polida de se referir a um ramo de outro Poder. Mas já que fez essa opção vocabular, o noticiário nacional nos dá muitas opções de fatos que poderíamos definir como tal.

“Excrescência”, por exemplo, pode ser, para alguns, um parlamentar requisitar informações sobre uma grande licitação ao Governo Federal e, em seguida, repassá-las a um dos empresários possivelmente interessados na mesma licitação.

Infelizmente, para muitos dos que mais dela precisam, a sentença de Rodrigo Maia sobre a Justiça do Trabalho é hoje uma realidade. A pesquisa “Perfil dos Atores Envolvidos no Trabalho Escravo Rural no Brasil“, publicada pela Organização Internacional do Trabalho, registra o depoimento de um trabalhador resgatado do trabalho escravo para quem “deveria ser feita uma justiça para todo mundo trabalhar de carteira assinada”. Para esse trabalhador, instituições dessa natureza ainda não existiam, pelo menos até aquele momento em que finalmente foi resgatado daquela situação de exploração incompatível com a dignidade humana e pôde, então, ter acesso a seus direitos.

Se quisermos realizar os objetivos fundamentais da República consagrados em nossa malferida Constituição, nosso desafio é fazer com que as instituições que atuam para garantir a realização da dignidade humana no mundo no trabalho – fiscalização do trabalho, Ministério Público do Trabalho, Justiça do Trabalho – sejam mais fortes e mais efetivas e não o contrário, para que seus serviços cheguem o quanto antes a trabalhadores como o desse depoimento. Aliás, poderíamos deixar esse trabalhador decidir quem deveria ou não existir: a Justiça que deve garantir o respeito aos direitos dos trabalhadores ou mandatos parlamentares que parecem servir apenas aos interesses de seus algozes.

Thiago Gurjão é Procurador do Trabalho. Sócio-fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador.

Fonte: Caros Amigos
Crédito Foto: Falando Verdades

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