Ainda sobre a Venezuela: o ataque sem tréguas do imperialismo

Por Gustavo Roberto Costa, no GGN.

Alguns dias atrás, o presidente norte-americano, Donald Trump, fez um discurso a correligionários no Estado da Flórida a respeito da “crise na Venezuela”. Além de dizer que estava ao lado do povo venezuelano, exaltar a “coragem” de Juan Guaidó (autoproclamado presidente do país), alegar que há um “desastre humanitário” no país causado pelo “ditador” Maduro e de manifestar o desejo de livrar a Venezuela da fome e da corrupção, o presidente dos Estados Unidos fez declarações inquietantes.

Dirigiu-se ele diretamente aos oficiais das forças armadas da Venezuela. Sugeriu que aceitassem Guaidó como seu presidente, assim teriam uma “anistia” para viver tranquilamente em seu país. Prometeu que Guaidó não “faria nada” a eles, nem ele próprio (Trump). Exortou os militares que desobedeçam às ordens de Maduro acerca da suposta ajuda humanitária à população venezuelana. Alegou que espera uma transição pacífica para a paz no país, mas que “todas as opções” estavam abertas.

Nada mais prepotente e aviltante.

Primeiramente, é importante reconhecer no discurso o tom de quem pretende, desde já, deixar claro que manda no tal “presidente interino”. Que autoridade tem o presidente norte-americano para prometer “anistia” a militares da Venezuela? E como pode sugerir, expressamente, que integrantes das forças armadas de outro país desobedeçam seu presidente e a lei e promovam um golpe no interior de seu Estado? Afora isso, o mandatário de um país não tem qualquer poder para decidir quem merece ou não “ajuda humanitária”. Isso deve ficar a cargo de organismos internacionais especificamente destinados a esse fim.

Embora esta reflexão seja muito mais inquietações que conclusões, contenha mais perguntas que respostas, uma coisa é certa: Trump não está preocupado com o povo venezuelano. Não está preocupado com a pobreza e a crise migratória do país – assim como não estava Obama. Se estivessem, retirariam as sanções econômicas impostas ao país caribenho, que, segundo estimativas, já lhe causaram um prejuízo de R$ 350 bilhões de dólares, o fechamento de 3 milhões de postos de trabalho, o bloqueio da entrada de medicamentos e a recusa na entrega de alimentos1. Um prejuízo infinitamente maior que a suposta ajuda humanitária prometida pelo governo norte-americano.

Portanto, parece uma crise criada por quem, agora, pretende prestar “ajuda humanitária”, o que não passa de um pretexto para uma agressão militar. Quem diz isso: ninguém menos que o filósofo e linguista norte-americano Noam Chomsky2. Todas as boas intenções do império norte-americano no Oriente Médio foram desmentidas posteriormente, e as consequências, catastróficas. Boa parte do território de países como Líbia, Afeganistão, Iraque e Síria está dominada por milícias fundamentalistas após a intervenção dos Estados Unidos – para proteger direitos humanos, porque havia armas químicas e para “ajuda humanitária”.

Como ainda acreditar nas boas intenções da oligarquia desse país, depois de tantos exemplos históricos? Como não perceber seus claros interesses econômicos por detrás dessas ações? Como pode parecer normal que seu presidente pregue sem pudores o desrespeito ao direito internacional e ao direito interno de outro país, sem que haja uma repulsa imediata da comunidade internacional? A resposta talvez esteja na chamada “guerra híbrida” – uma avalanche de notícias e informações falsas, disseminadas tanto pelos grandes veículos de imprensa como por mídias sociais –, a nova estratégia utilizada para justificar o ataque e a derrubada do inimigo da vez.

Eduardo Galeano, no clássico “As veias abertas da América Latina”3, mostra como o Paraguai tornou-se um dos países mais pobres e atrasados da América do Sul devido à “guerra de extermínio” promovida, em 1865, por Brasil, Argentina e Uruguai e patrocinada diretamente pela Inglaterra, cujos banqueiros e industriais foram os maiores beneficiados. Antes da guerra, o governo paraguaio tinha bases na massa campesina, e a oligarquia não mandava no país. A produção era destinada ao consumo interno. O país era um “oásis de tranquilidade”, “não tinha mendigos, famintos nem ladrões” e registros dão conta de que não havia crianças que não soubessem ler e escrever. Tinha uma moeda forte e estável e não devia um centavo ao exterior. As justificativas para a guerra foram as mesmas: “o impulso da opinião pública numa justa causa”4. Somente um sexto da população paraguaia sobreviveu.

A história se repete, e sem que tivéssemos aprendido nada com ela. Promove-se a destruição de um país “para o seu próprio bem”; bem que nunca chega. Assim como no Paraguai do século XIX, não são os ricos, a oligarquia, os latifundiários que mandam na Venezuela. Daí o inconformismo. Há limites (ainda que tímidos) para a exploração do petróleo venezuelano por parte de empresas norte-americanas – todas com forte controle estatal, diga-se de passagem. E isso é inadmissível para o imperialismo, ávido por riquezas naturais de todo o mundo. A espoliação sem limites deve ser levada a efeito, custe o que custar.

Quanto tempo e quantas vidas ainda serão necessárias para que o povo da América Latina pare de ser manipulado e pare de agir contra seus interesses e os interesses de países irmãos? A distribuição ampla e gratuita de Galeano, Garcia Márquez e Mário Benedetti pode ser, ao menos a longo prazo, uma saída para esse drama.

Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD. Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM.

4 Galeano descreve: A guerra, contudo, durou cinco anos. Foi uma carnificina, executada ao longo dos fortins que defendiam, de tanto em tanto, o rio Paraguai. O “oprobrioso tirano” Francisco Solano López encarnou heroicamente a vontade nacional de sobreviver; o povo paraguaio, que no último meio século não conhecera guerra alguma, imolou-se ao seu lado. Homens, mulheres, crianças e velhos: todos se bateram como leões. Os prisioneiros feridos arrancavam as ataduras para que não os obrigassem a lutar contra seus irmãos. Em 1870, López, à frente de um exército de espectros, velhos e meninos que punham barba postiça para impressionar de longe, internou-se na selva. Por traição real ou imaginária, fuzilou seu irmão e um bispo que com ele marchavam naquela caravana sem destino. Quando, finalmente, o presidente paraguaio foi assassinado à bala e lançado na densa mata do cerro Corá, ainda conseguiu dizer: “Morro com minha pátria”, e era verdade”

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