A prisão após condenação em segunda instância não tem nada a ver com o “combate à corrupção”

Por Gustavo Roberto Costa.

Ao decidir pela improcedência das ações declaratórias de constitucionalidade 44, 44 e 54, permitindo, assim, que réus condenados após decisão de segundo grau passem a iniciar o cumprimento de sua pena, estará o Supremo Tribunal Federal auxiliando o país no combate à corrupção? Não. Estará o STF entrando na “trincheira” do enfrentamento da criminalidade? Não. Haverá algum tipo de alívio à população quanto à sensação de insegurança vivida nas ruas? Não. Haverá alguma vantagem para a segurança pública do país? Nenhuma.

A única coisa que a corte suprema fará é aumentar o número – que já não é pequeno – de injustiças cometidas por nosso sistema judicial. Não tem nada a ver com o combate à corrupção. A corrupção nunca acabará enquanto houver controle da política por grandes capitalistas. Nunca acabará enquanto o modelo econômico for o neoliberal. Não tem nada a ver com Lula. Sua condenação foi decretada sem provas e está recheada de nulidades – ele sairá por outros motivos, mais cedo ou mais tarde.

É um erro crasso – quando não má-fé – defender a supressão de direitos na crença de que “poderosos” passarão a cair nas malhas da justiça penal. Isso nunca aconteceu e nunca acontecerá (a não ser episódica e pontualmente). O direito penal como o conhecemos foi criado para controle e segregação do povo pobre e excluído. Essa é sua razão de ser e de existir – ele não pode cumprir outro papel. A prisão foi criada junto do capitalismo – para controlar o preço da mão de obra e aumentar o lucro de donos de fábricas (indispensável a leitura de “Cárcere e fábrica” e “Punição e estrutura social” para entender).

Quem pagará caro por essa irresponsabilidade do supremo (acaso confirmada) serão os clientes preferenciais e exclusivos do sistema de justiça: os negros, pobres, vulneráveis e desvalidos. Serão os condenados em segunda instância com base em entendimentos contrários à jurisprudência pacífica dos tribunais superiores sobre determinados temas. Muitos dos que estão condenados em 2º grau não deveriam ser presos, pois têm direito a cumprir pena fora das masmorras (as prisões).

Não é preciso ir longe. Uma pesquisa rápida no endereço eletrônico do Tribunal de Justiça de São Paulo demonstra que muitos réus, condenados por crime de tráfico de drogas, por exemplo, têm negado seu direito de cumprir pena em regime aberto ou de cumprir penas alternativas (restritivas de direitos), o que já foi tido como possível pelo STF em inúmeros julgados.

No julgamento do HC nº 111.840, o STF declarou inconstitucional a obrigatoriedade da imposição do regime fechado a praticantes de crimes de tráfico, e o mesmo Supremo, quando do julgamento do HC nº 97.256, reconheceu a inconstitucionalidade da proibição da substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos aos condenados pelo mesmo crime. Isso significa que, para a corte suprema, condenados por tráfico primários e sem envolvimento com organizações criminosas podem cumprir pena em regime menos gravoso.

A par do acerto da decisão sob o ponto de vista jurídico, num país que possui algumas dezenas de milhões de desempregados e outras dezenas de milhões na informalidade, afigura-se injusto, desumano e cruel encarcerar pessoas que tentam sobreviver e manter sua família em um mercado tornado ilegal. Nada explica decretar penas de prisão para quem não tem a mínima perspectiva de vida – e que terá ainda menos em razão do estigma e da etiqueta coladas após passar uma temporada num estabelecimento prisional.

Mas com argumentos já superados, o tribunal paulista fixa habitualmente regime fechado em razão de o tráfico representar “lucro fácil em detrimento da essência e condição humana” (autos n. 1501862-21.2018.8.26.0318 – 5ª Câmara Criminal), pela “nocividade dos entorpecentes” e da “hediondez do crime” (autos n. 1500936-68.2018.8.26.0535 – 9ª Câmara Criminal), por não haver obrigatoriedade no “acatamento do novo entendimento” do STF (autos n. 1503054-14.2018.8.26.0536 – 3ª Câmara Criminal) e até mesmo porque isso contribuiria para um “ambiente de impunidade” (autos n. 0002355-69.2017.8.26.0201 – 7ª Câmara Criminal).

É dizer, a chance de esses réus terem sua condenação abrandada posteriormente é imensa. Nesse caso, quem devolverá o tempo de liberdade ilegitimamente suprimido? Se os tribunais locais seguissem as orientações pacificadas pelos tribunais superiores teriam argumentos mais fortes para defender o cumprimento da pena após decisão de 2ª instância (embora continuasse sendo uma prática inconstitucional).

Mas como acontece o contrário – cada tribunal julga a seu alvedrio, gerando uma insegurança jurídica de proporções continentais –, não há como correr o risco de se decretar prisões que poderão e deverão ser revistas. Um sistema de justiça que não se importa com o possível cometimento de injustiças em série é um sistema de injustiça. Um sistema que não cumpre seu papel. Além do mais, foge ao entendimento humano uma corte suprema poder declarar como inconstitucional um artigo de lei (art. 283 – CPP) que tem a redação no mesmo sentido de um comando constitucional (art. 5º, LVII).

Por isso, não há outra decisão possível ao STF. Não há margem para interpretação. Os ministros que julgarem em sentido contrário trairão sua missão (como já fizeram várias vezes). Trairão seu juramento. Trairão o que o ordenamento jurídico tem de mais caro: a dignidade humana.

Trairão sua história e por isso sempre serão lembrados.

Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD. Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM.

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