A pandemia e a máscara da morte

 

Por Rômulo Moreira no GGN

Curto e macabro, A Máscara da Morte Rubra pode ser considerado como um dos melhores contos de horror de Edgar Allan Poe, e foi possivelmente inspirada em um terrível surto de cólera que atacara a Europa, mais especialmente a França, na primeira metade do século XIX.

“Tive um sonho, que não era de todo um sonho:

O sol estava extinto e as estrelas vagavam pelas trevas eternas,

Sem raios, sem rumo.

A Terra congelada, girava às cegas no ar que escurecia, sem Lua.

Manhã veio e se foi, e retornou sem trazer o dia.

Em meio à desolação, os homens esqueceram-se de suas paixões.

E corações enregelados entregaram-se a uma prece egoísta pela luz.”

Há um famoso conto de Edgar Allan Poe, o mestre do mistério, do fantástico e do suspense (aliás, uma de suas histórias mais curtas) que se chama A Máscara da Morte Rubra (The Masque of the Red Death, em inglês), publicado pela primeira vez em maio de 1842, cujo enredo, em síntese, aborda a loucura diante de uma epidemia.[3]

Curto e macabro, A Máscara da Morte Rubra pode ser considerado como um dos melhores contos de horror de Edgar Allan Poe, e foi possivelmente inspirada em um terrível surto de cólera que atacara a Europa, mais especialmente a França, na primeira metade do século XIX.

Relendo-o agora, e em tempos de pandemia, a história pareceu-me extremamente atual, inclusive porque revela a que ponto podem chegar a loucura e os desvarios do homem, diante de uma ameaça mortal da natureza.

O conto lembra, também, a irresponsabilidade que hoje se vê em alguns líderes mundiais, que se notabilizaram (e ainda se notabilizam) pelo desprezo à vida, pelo negacionismo ignorante, pela necropolítica e pela barbárie!

Allan Poe conta a história de um príncipe “feliz, destemido e sagaz” que, diante de uma doença terrível que se abatera sobre o seu país e o devastava (“jamais outra praga tinha sido tão fatal ou tão horrenda”), e ao perceber “que seus domínios já haviam perdido a metade da população, chamou à sua presença um milhar de seus amigos saudáveis e joviais, escolhidos entre os cavaleiros e as damas de sua corte, e com estes retirou-se para a segurança e reclusão total de uma de suas abadias fortificadas.”

O príncipe e os seus cortesãos “acreditavam ser possível desafiar o contágio” (quem sabe em razão de seu histórico de atleta…), afinal, “o mundo exterior que cuidasse de si mesmo, e era tolice, enquanto isso, lamentar os mortos ou até mesmo pensar neles.”

(Afinal, ele não era coveiro e todos iriam, finalmente, morrer um dia…).

Tranquilo em sua fortaleza, e enquanto “a pestilência rugia mais furiosamente por todos os recantos do país”, o príncipe resolveu dar uma grande festa, como se nada estivesse acontecendo ao seu redor, aglomerando-se num “baile de máscara de magnificência ainda maior que a usual, cenário de grande prazer e voluptuosidade.”

No dia da grande festa tudo corria bem, e todos se divertiam aglomerados, quando, à meia noite, após “soar as doze badaladas no relógio de ébano, a música cessou, as evoluções dos passistas se interromperam e uma inquietude suspendeu todo o movimento.”

Eis que, inopinada e surpreendentemente, durante aquelas doze badaladas, surgiu “uma criatura mascarada que não havia atraído antes a atenção de ninguém, e o rumor desta nova presença se espalhou aos murmúrios, até que uma espécie de zumbido ergueu-se da turba, um sussurro expressivo de desaprovação e surpresa, transformando-se enfim em medo, horror e náusea.”

 Allan Poe, então, escreveu: “Existem acordes nos corações dos mais levianos que não podem ser tocados sem lhes despertar emoção. Mesmo os inteiramente perdidos, para quem a vida e morte são idênticos brinquedos, têm certos tabus que não podem ser quebrados por zombarias.”

  E naquele momento da aparição da estranha criatura (“alta e esquálida, amortalhada da cabeça aos pés pelos planejamentos que costumam ser levados à tumba”) todos sentiram “profundamente que na fantasia e no porte do estranho não existia graça nem elegância.” A máscara da inusitada personagem de Poe “tinha sido confeccionada de modo a lembrar, em seus menores detalhes, o rosto de um cadáver endurecido.”

Ao vê-lo, o príncipe “imediatamente foi tomado de convulsões, com fortes tremores provocados pelo medo ou pelo nojo; mas, no instante seguinte, sua testa ficou encarnada de cólera.” Esbravejou, então:

“Quem ousa insultar-nos com esta farsa sacrílega? Agarrem-no agora e tirem-lhe a máscara, para que saibamos quem vamos enforcar nas muralhas amanhã pela manhã!”

Assim que o príncipe vociferou, um grupo fanático e fundamentalista de apoiadores – tal como se vê hoje – foi em direção ao mascarado, mas, “devido a um espanto e terror sem nome despertado no coração de todos pela assombrosa fantasia adotada pelo farsante, nenhum dentre eles ousou estender a mão para capturá-lo.”

 Eram, no fundo, uns covardes!

Então, sem ninguém para impedi-lo, o mascarado aproximou-se a um metro do príncipe, sem lhe dar maior atenção, e prosseguiu adiante pelos salões da abadia. O príncipe, “enlouquecido pela raiva e pelo opróbio de sua própria e momentânea covardia, ergueu bem alta uma espada contra o estranho, para atingi-lo.”

O mascarado, no entanto, “voltou-se subitamente e confrontou seu perseguidor. Ouviu-se um grito agudo, e a espada caiu reluzindo sobre o tapete negro, seguida, no momento seguinte, pelo corpo do príncipe, fulminado pela morte.”

Então, uma “massa alucinada” agarrou o mascarado, quando “perceberam que a mortalha fúnebre e a máscara mortuária de que se haviam apoderado com rudeza tão violenta não envolviam nenhuma forma tangível.”

Era a morte, disfarçada de convidada para a festa, que chegara “como um ladrão à noite, e um por um caíram os dançarinos nos salões em que se haviam alegrado e cada um deles morreu na mesma postura desesperada em que havia tombado.”

(Re)lembro este conto, pois, metaforicamente, vejo alguma semelhança com o que se passa no mundo de hoje, em tempos de pandemia, recordando as milhões de mortes causadas pela Covid-19, e os “príncipes” que desafiaram (e desafiam) o vírus, negando-o ou, simplesmente, deixando a população morrer pela falta de informação, de vacinas (insuficientes e atrasadas) e, sobretudo, de vergonha!

[1] Rômulo de Andrade Moreira, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.

[2] BYRON, George Gordon (Lord). Darkness, em The Works of Lord Byron: A New Revised, and Enlarged Edition with Illustrations, Ed. Ernest Hartley Coleridge, Vol 4 (Londres: John Murray, 1901), p. 42. Citado por GLEISER, Marcelo. A Ilha do Conhecimento. Rio de Janeiro: 2014, p. 123.

[3] POE, Edgar Allan. A Carta Roubada e Outras Histórias de Crime e Mistério. Porto Alegre: L&PM Editores, 2003, pp. 152-161.

Deixe um comentário