A honra perdida das nossas instituições persecutórias

Já desconfiávamos de muita coisa errada nessa tal Operação “Lava Jato”, a mais estrondosa invenção da gestão de Rodrigo Janot à frente da PGR. Tanta visibilidade e tanta proatividade chegam a ser obscenas para a atuação da acusação na persecução penal. Em nossos dias, esta costuma ser mais discreta, acanhada – quase envergonhada, para usar a imagem de Foucault. O direito penal contemporâneo não quer expor. Quer proteger: a “sociedade” da violência contra seus bens jurídicos mais caros, o acusado de uma invectiva injusta. Em ambos os pólos, a dignidade da pessoa é parâmetro da atuação estatal.

Tal dignidade exige comportamento digno, também, dos atores ativos da persecução, do Ministério Público e da polícia judiciária, erigidos em serviços públicos em prol da cidadania. Para tanto, é sua obrigação agir na medida certa, manter essa medida – “Maßhalten“, diria-se em alemão, o que equivale, igualmente, a moderar-se. A presunção de inocência é uma flor delicada. Qualquer distração no seu trato conduz ao seu perecimento irremediável.

“Anstand” e “Aufrichtigkeit” são palavras difíceis de serem traduzidas para o português. Todo idioma tem certas palavras que são muito próprias da índole de cada povo, de cada sociedade. A “saudade” é uma dessas, que exprime bem a melancolia lusitana tão bem cantada em verso e melodia no fado e sem igual em outra língua. “Anstand” e “Aufrichtigkeit” estão para a autodisciplina, a autocontenção, tão prezadas na sociedade alemã. Muitos traduzem “Anstand” por boas maneiras, decoro ou decência, e “Aufrichtigkeit” por sinceridade, honestidade ou franqueza. Mas o significado das duas palavras vai muito além disso. Em ambas sobressai a ideia de estar emprumado, estar de pé, levantar-se por algo, como a dizer: até aqui vai, mas não ultrapasse a linha vermelha! Isso dito em alto e bom som.

Não se esqueça que “Aufrichtigkeit” está relacionado com “aufrecht”, ereto. O traço distintivo do ser humano é o “aufrechter Gang”, o andar ereto. O grande filósofo Ernst Bloch sempre insistiu no andar ereto. Por fim, a segunda sílaba de “Aufrichtigkeit” está relacionada com “Recht”, o direito.

Ter “Anstand” é ter compostura; ser “aufrichtig”, sobressair-se na correção. Eis o que se espera de servidores públicos.

Na era da Operação Lava Jato, parece que tais qualidades se perderam com o discurso oco do moralismo sem causa. Parece, por vezes, uma fraqueza geracional. Jovens, mui bem adestrados para se imporem num mundo competitivo, só conhecem um objetivo: vencer, vencer sempre. “Perdedores”, “losers” são a escória social, desprezível, lixo humano. Mas os “vencedores” são vazios, pois não sabem para que serve a vitória, além do autolocupletamento. Vivem num limbo ético, sem verdadeiras causas pelas quais lutar.

É aí que entra o artificial conceito de “combate à corrupção”. Para eles, corruptos são só os outros, os “losers” escolhidos, que precisam ser derrotados. Confundem-se com o que denominam escória social, incapaz de vencer por ser fraca. No mundo da competição, ser fraco é o maior dos defeitos. Por isso desprezam a tutela coletiva que ampara vulneráveis e gostam tanto do direito penal em que, como agentes da elite do estado, podem impor a humilhante derrota a cidadãos a cada dia que passa.

“Fachin é nosso – uhuu, ahaa”: eis o grito de guerra do adolescente complexado que arrebatou um troféu do inimigo imaginário – o direito, a dignidade, o “Anstand”, a “Aufrichtigkeit”. É “nosso” e não é de mais ninguém! “Tungamos” o ministro, como “tungamos” a mídia, a lei, a Constituição e o país! É tudo “nosso”! Só não saberiam dizer para quê! Porque não têm causa a não ser a sua, que é manter-se em evidência, vencedores temidos e, por isso, tratados a pão-de-ló pela república, com altos salários, muitas vantagens e um orçamento a dar inveja a qualquer outra repartição pública.

Disso tudo tínhamos uma vaga ideia. Mesmo assim, as revelações do The Intercept nos deixam estarrecidos. A falta de compostura, a falta de decoro da rapaziada que se autoproclamou salvadora da pátria é tão ordinária, que acaba por tingir indelevelmente as instituições que representa.

Moro – “in Fux we trust” – foi tudo que um juiz jamais deveria ser: parcial, mesquinho, vaidoso, prepotente, arrogante, carente de qualquer medida, de qualquer moderação para manter a balança da justiça equilibrada. Conspirou, conspurcou, traiu, rasgou todo e qualquer código de ética ao dar ordens à acusação, aconselhá-la em detrimento do acusado, debochar dos advogados – “showzinho da defesa” – e até tentar ajudar a derrubar o governo do país vizinho. Em nome de que? Da antipatia por “losers”.

Dallagnol et caterva – um bando de enfants gâtés, meninos mimados, que se comportaram feito moleques, debochando até da natural majestade dos ministros supremos. Não sobrou ninguém em sua soberba. Todos são “losers”, e eles tudo podem: lançar acusações apócrifas, colocar sob pressão potenciais testemunhas mediante ameaça, violar corriqueiramente sigilos funcionais, execrar a chefe da instituição, combinar com autoridades estrangeiras repasses bilionários para si, para criarem uma fundação a servir de seu perpétuo playground. E combinam tudo entre si em grupos de “chat” em que prevalece uma linguagem chula, típica de quem passou boa parte da tardia juventude devorando leitura de mangás e confunde a vida com uma gincana. Comportaram-se como pichadores de fachadas das instituições. Reduziram o ministério público a uma fachada. E deixaram-na imunda.

E a polícia? A Federal passou a ser a instituição que causou o suicídio do reitor da UFSC, perseguido e humilhado por acusações vazias. Até hoje nos deve, à sociedade brasileira, ao menos uma satisfação. Um reconhecimento do erro, um mea culpa. Mas, desculpar-se, na visão de boys e girls que ocupam cargos de delegados, seria coisa de perdedor. Cruzes!

Será que nossos ministros supremos, que julgarão a suspeição de Moro em algum momento num futuro próximo, têm a completa dimensão do estrago que essa garotada sem “Anstand” e “Aufrichtigkeit” causou na democracia brasileira? Conseguem ver o tamanho da desgraça que provocaram? Tudo isso vai muito mais longe do que a prisão interesseira e politiqueira de Lula. É uma vergonha coletiva que nos impuseram e que causou o esgarçamento do sentido de sociedade e de nacionalidade entre brasileiras e brasileiros. Recuperar nossa autoestima será tarefa das mais difíceis na história do Brasil.

Esperemos que esses ministros se lembrem – ao menos uma vez – que brigar por sua indicação ao STF por certo ator político e, depois, embarcar no discurso de seu linchamento moral em prol do redentorismo corporativo de uma garotada sem causa é também falta de “Anstand” e “Aufrichtigkeit”! Que cumpram seu papel ou que tenham a decência de sair, porque, se ainda derem apoio aos pichadores, devem lembrar que foram indicados por quem hoje guardariam profundo rancor…

Eugênio Aragão é membro aposentado do Ministério Público Federal e ex-ministro da Justiça.


Foto: vitrine de shopping na cidade de São Paulo / © Reprodução / Facebook

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