Arquivos Diários : julho 26th, 2021

Nostalgia restauradora e retorno ao passado: o sentido das práticas desconstituintes no Brasil atual

 

Por Cristiano Paixão[1] no GGN 

            Vivemos muitas crises no Brasil atual. Uma delas envolve a dimensão temporal. Há uma crise de futuro. Num inspirado artigo, a historiadora Heloisa Starling, escrevendo em 2020, afirma: “pela primeira vez na história nos falta a imaginação de futuro”[2]. O Brasil, tantas vezes descrito como o “país do futuro”, com ênfase na perspectiva de realização de seu imenso potencial, agora se vê exposto à supressão desta dimensão prospectiva. Manifestando desde já nossa concordância com o diagnóstico proposto por Heloisa Starling, cabe então perguntar: qual a relação dessa fratura temporal vivida pelo Brasil e a crise da Constituição de 1988?

            Em textos anteriores ressaltamos a disseminação de práticas desconstituintes pelo Governo Federal desde o início da atual gestão. Vimos que nem a pandemia de Covid-19 teve o poder de refrear as manifestações estatais de desconsideração, omissão e crescente destruição da ordem constitucional estabelecida a partir de 5 de outubro de 1988. Num primeiro momento, apontamos o oportunismo desconstituinte do governo que se verificou na supressão de direitos sociais, por medida provisória, logo após o início da pandemia (https://jornalggn.com.br/a-grande-crise/covid-19-e-o-oportunismo-desconstituinte-por-cristiano-paixao/). Depois observamos que a desativação seletiva do funcionamento de instituições públicas ligadas a vários campos da experiência social e política conduz a um aprofundamento dessa desconstitucionalização (https://transformamp.com/destruindo-por-dentro-praticas-desconstituintes-do-nosso-tempo/). Por fim, verificamos a forma eleita pelos agentes governamentais (e, em alguns casos, também os poderes legislativo e judiciário) para cumprir sua agenda desconstituinte: desativar a ordem constitucional “por dentro”, ou seja, pela via de práticas administrativas ou medidas legislativas, sem a necessidade de aprovar emendas constitucionais (https://jornalggn.com.br/artigos/captura-da-constituicao-e-manobras-desconstituintes-cronica-do-brasil-contemporaneo-por-cristiano-paixao/).

            Nas entrelinhas dessas práticas desconstituintes é possível vislumbrar a questão do futuro. Não por acaso, a sabotagem institucional verificada no Brasil contemporâneo é particularmente forte em temas constitucionais que expressam um projeto de futuro: meio ambiente, educação, cultura.

            A devastação do meio ambiente brasileiro, em vários dos seus biomas, é um dado da realidade que se revela particularmente nefasto. Desmatamento, queimadas e práticas ilegais de exploração da natureza transformaram o Brasil em alvo de críticas internacionais e domésticas. Cenas de incêndios na Floresta Amazônica e no Pantanal, para ficar em dois exemplos bastante evidentes, correm o mundo e desvelam para toda a sociedade a perda de controle sobre a questão ambiental pelas autoridades que deveriam zelar pela preservação da natureza (https://brasil.elpais.com/brasil/2021-06-23/investigado-ricardo-salles-deixa-comando-do-meio-ambiente-em-meio-a-desmatamento-recorde.html). No que diz respeito à educação, a sucessiva troca de ministros que desconhecem os desafios da área e se mostram negligentes em relação à gestão do sistema educacional, os recorrentes cortes de verbas para instituições de ensino e a constante ameaça de colonização da área com pautas propostas por integrantes da “ala ideológica” do governo configuram um quadro de abandono, incompetência e sabotagem (https://www.rfi.fr/br/brasil/20200203-desmonte-da-educa%C3%A7%C3%A3o-com-bolsonaro-%C3%A9-in%C3%A9dito-desde-a-ditadura-militar-diz-antrop%C3%B3log). Por fim, a cultura enfrenta processo de desmonte das políticas públicas previstas na Constituição, quer pela inexistência de qualquer diretriz minimamente estruturante, quer pelo despreparo dos agentes nomeados para ocupar postos-chave na área (https://jornal.usp.br/cultura/estamos-vivendo-o-desmonte-total-das-instituicoes-da-cultura/).

            Essas práticas produzem efeitos que podem afetar várias gerações. Cada dia fica mais claro que o Brasil precisará de um bom período de tempo para obter um mínimo de normalidade política e administrativa. O impacto do desmonte nas áreas ambiental, da educação e da cultura atinge também a Constituição de 1988. Esses campos são particularmente detentores de uma “futuridade” no texto constitucional. O art. 225 da Constituição estabelece que todos “têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Os arts. 214 e 216-A, § 1º preveem planos nacionais para a educação e cultura, enquanto os arts. 214, II e 216-A, II estabelecem a meta de universalização do acesso a políticas educacionais e manifestações culturais. É natural que seja assim. Todo constituinte quer ver seu texto perdurar, ultrapassar as barreiras geracionais, vigorar por um futuro amplo. Meio ambiente, educação e cultura são permeados dessa expectativa de duração e crescente aperfeiçoamento da democracia brasileira.

            Como bem lembra Heloisa Starling, o atual presidente da república, em discurso proferido em Washington logo após a sua posse, afirmou que “o Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa”. A agenda desconstituinte estava, portanto, anunciada. A crise de futuro que vivemos não é acidental, não é inesperada, não é contingente. É intencional e deliberada.

            Sabemos, contudo, que a dimensão temporal é indissociável da vida humana, especialmente no campo da política e da sociedade. Não é possível viver num mundo inteiramente desprovido de futuro. Por isso, no tema que aqui nos interessa, devemos tentar enxergar nas entrelinhas, nas frestas do discurso de desconstrução. Não há espaço vazio em política. Há, na maior parte das vezes, pretensões reconstituintes por detrás de práticas desconstituintes. É hora de mapear esse contexto de linguagem política.

            Um indício surgiu num momento de crise política. Como sabemos, o então ministro da defesa, general Villas-Bôas, divulgou um tuíte na véspera do julgamento do habeas corpus impetrado pelo ex-Presidente Lula no STF. Nesse tuíte, do dia 3 de abril de 2018, o general propõe uma indagação: “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?” (https://www.conjur.com.br/2021-fev-12/villas-boas-revela-alto-comando-exercito-ameacou-stf). Em outro ponto da postagem, o general afirmou: “Asseguro à nação que o Exército brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões constitucionais” (https://piaui.folha.uol.com.br/o-general-o-tuite-e-promessa/).

            A leitura dessas mensagens permite algumas conclusões: (1) o Exército justifica sua intervenção atípica num julgamento do STF “no bem do país e das gerações futuras”; (2) a menção ao “cidadão de bem” indica uma divisão na sociedade brasileira, com cidadãos de tipos diferentes; (3) o Exército apresenta-se como instituição que tutelará o “cidadão de bem” e as futuras gerações.

            Um exército que “oferece” uma forma de tutela à sociedade e que se coloca na posição de compartilhar “o anseio do cidadão de bem”, figura que pressupõe uma distinção entre amigo e inimigo. O que lembra esse discurso?

            Fica claro que o suposto “projeto” dos atuais ocupantes do poder, com o protagonismo do exército não pressupõe exatamente um novo futuro; trata-se, na verdade, do resgate de um passado. Trata-se, para os atuais ocupantes do poder (especialmente os fardados), de retornar ao período da ditadura militar.

            Em mais de uma oportunidade, o presidente e o vice-presidente da república prestaram homenagem a um torturador do regime militar, coronel Brilhante Ustra (https://www.dw.com/pt-br/elogio-de-mour%C3%A3o-a-torturador-causa-rep%C3%BAdio/a-55223890). Sua viúva foi recebida no gabinete presidencial (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/08/bolsonaro-volta-a-chamar-ustra-de-heroi-nacional-e-recebe-viuva-no-planalto.shtml). Um agente envolvido em violências cometidas no Araguaia foi igualmente recebido e homenageado no Palácio do Planalto (https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/04/bolsonaro-recebe-major-curio-que-comandou-repressao-a-guerrilha-do-araguaia-durante-a-ditadura.ghtml).

            Existe, nesses atos e cerimônias, uma ideia clara. Ao procurar reabilitar personagens responsáveis por graves atrocidades cometidas contra opositores políticos e contra a sociedade em geral, os atuais governantes pretendem “legitimar” o regime como um todo, “justificando” essas ações no combate a um “inimigo”.

            Esse restabelecimento do regime militar, contudo, é incompatível com a Constituição de 1988, que se constitui como Estado Democrático de Direito e reconhece a prática de atos de exceção pela ditadura. Fica caracterizada, assim, uma disputa sobre o passado que remete ao futuro. E essa disputa está ocorrendo a cada momento e em várias arenas. Pensemos nos três temas aqui discutidos. Todos eles vêm sendo objeto de políticas que remetem ao período da ditadura militar. A tutela do meio ambiente está cada dia mais concentrada em agentes militares, num fenômeno que é comum a todas as áreas do governo, mas é particularmente prejudicial à fiscalização ambiental (https://reporterbrasil.org.br/2020/07/concentracao-de-poder-pelos-militares-enfraquece-politicas-para-amazonia-e-abre-caminho-para-mais-desmatamento-e-queimadas/). Na educação temos a disseminação, em vários Estados, das chamadas escolas “cívico-militares”, com a criação de um plano nacional e a meta de criar 216 dessas escolas até 2023 (https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2020/12/03/escola-civico-militar-e-uma-opcao-para-todo-o-pais-veja-pros-e-contras.htm). E na cultura se verifica a prática de atos de censura e/ou controle sobre conteúdo de manifestações artísticas, como ficou claro pela negativa de apoio a um festival de música em razão da orientação política dos organizadores (https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2021/07/12/funarte-cita-deus-para-reprovar-apoio-da-lei-rouanet-a-festival-de-jazz-na-bahia.ghtml).

            Militares ocupando áreas estratégicas do governo civil, implantação de escolas controladas pelas forças armadas, censura à arte e à cultura em geral. Ecos de 1964 aparecem no Brasil de 2021. O contexto, sabemos, é muito diferente. Mas a tentativa de emular a época ditatorial permanece. Como compreender essa tentativa de retorno ao passado?

            Estamos diante de uma manifestação de nostalgia. Uma nostalgia artificial, construída por meio de atos políticos, homenagens e narrativas sobre o passado. Num belo livro, a ensaísta Svetlana Boym propõe uma diferenciação entre dois tipos de nostalgia: podemos encontrar um tipo de sentimento em relação ao passado que é muito comum entre imigrantes e povos submetidos a deslocamento ou diáspora[3]. Essa é a nostalgia “reflexiva”, na qual o passado é visto como algo próximo e distante, como referência importante (quase central) mas firmemente estabelecida no passado e sempre marcada pela ambiguidade (temporal e espacial) e pela dúvida sobre o efetivo papel desse passado. Está claro que não é essa a nostalgia que informa o atual governo, as forças armadas e seus apoiadores.

            O que se procura impor no Brasil contemporâneo é diferente. Trata-se da “nostalgia restauradora”, que tem outras características, segundo Svetlana Boym. Nessa tentativa de restauração, não há dúvida, não há ambivalência. O projeto nostálgico é de um retorno a um passado que precisa ser vivido como portador de uma verdade. Regimes de extrema direita em todo o mundo recorrem a esse tipo de narrativa: querem recompor uma sociedade que jamais deveria ter sido modificada, querem um retorno a um passado idílico, feliz. Para tanto, vale o recurso a teorias conspiratórias – no caso brasileiro, a recuperação de um anticomunismo anacrônico e o estabelecimento da divisão entre cidadãos “de bem” e os “outros” são evidências dessa atitude. Nesse universo nostálgico, um torturador se transforma em “herói nacional”.

            Há, contudo, um obstáculo a essa nostalgia da opressão. Ela não encontra amparo na Constituição vigente, voltada, em muitos de seus dispositivos, para a construção de um futuro caracterizado pelo exercício da democracia e da inclusão social. Instala-se, então, uma disputa sobre o passado, que tem evidente impacto sobre o presente e o futuro. Por detrás das práticas desconstituintes que vivenciamos hoje – na defesa do meio ambiente, na educação, na cultura, nos direitos sociais, no combate ao racismo e tantos outros campos da experiência social – há uma disputa sobre o sentido da Constituição. É fundamental, então, restabelecer a esfera pública como local de debate, enfrentamento político e ocupação de espaços. O projeto nostálgico restaurador é incompatível com a ordem constitucional vigente. A prática reconstituinte que se impõe não é de substituição, portanto, de um texto, mas de afirmação da Constituição de 1988, em seus elementos estruturantes e principiológicos.

[1] Professor Associado da Faculdade de Direito da UnB. Foi professor visitante nas universidades de Macerata e Sevilla. Coordenador dos grupos de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e “Direito, História e Literatura: tempos e linguagens” (CNPq/UnB). Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB. Subprocurador-Geral do Trabalho. Integrante do Coletivo Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

[2] STARLING, Heloisa M. Não dá mais para Diadorim? O Brasil como distopia, in DUARTE, Luisa; GORGULHO, Victor (orgs.). No tremor do mundo: ensaios e entrevistas à luz da pandemia. Rio de Janeiro: Cobogó, 2020, p. 58.

[3] BOYM, Svetlana. The future of nostalgia. New York: Basic Books, 2001, p. 7-43.

A indicação do novo ministro do STF, a ‘questão religiosa’ e o xadrez político

 

Por Fabiano de Melo Pessoa no Conjur 

O processo de escolha de um novo ministro do STF e o seu contorno político
Iniciou-se formalmente no último dia 12 de julho, com a aposentadoria do ministro Marco Aurélio Mello, o processo para indicação de mais um novo ocupante do Supremo Tribunal Federal.

Tendo sido ao STF atribuído papel preponderante na resolução de conflitos entre os entes federativos e entre os poderes que exercem diretamente a representação política, o Executivo e o Legislativo, para além da competência exclusiva para processar e julgar, nos termos da Constituição, as mais altas autoridades da República, o processo de indicação dos seus ministros se encontra sempre entre as questões mais relevantes no âmbito da política nacional.

Sendo assim, a indicação, aprovação e nomeação dos ministros do STF é, portanto, eminentemente, um processo de cunho político.

Pretende-se que seja, contudo, uma ação política mediada pelos marcos e regras do processo de interação institucional. Promovida, assim, em geral, em intensidade distinta das disputas políticas afetas diretamente aos Parlamentos ou aos interesses partidários cotidianos.

A escolha do novo ministro e o atual contexto político de crise
Entretanto, não raro, o processo de indicação de novos membros do STF passa a se desenvolver de forma imbricada às dinâmicas dos arranjos políticos partidários e da política cotidiana.

E é o que agora acontece, de forma bastante evidenciada.

Assim ocorre, constata-se, especialmente quando se desenvolve em meio a uma crise que coloca em disputa a própria sustentabilidade do atual governo, cujas ações estão sob apuração tanto no Congresso Nacional quanto no STF.

São inúmeros os pedidos de abertura de processo de impeachment em face do presidente da República, aguardando análise no âmbito da presidência da Câmara dos Deputados. Está em pleno funcionamento, no Senado, Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), para apurar a responsabilidade do governo federal no processo de combate à pandemia, diante dos já mais de 500 mil mortos registrados. Para além disso, no próprio STF, estão em andamento inquéritos para apuração de atos atribuídos a integrantes do governo ou a ele ligados, quando não relacionados ao próprio presidente, tendo em vista a atribuição criminal exclusiva da corte, para investigações envolvendo detentores de prerrogativa de foro, pelo exercício de suas funções.

Nesse sentido, mostra-se fundamental que façamos destacar algumas questões desse processo de nomeação de um novo ministro do STF, que passou a se desenvolver em modo de “alta intensidade política”, diante das circunstâncias acima apontadas.

A disputa entre os pretendentes ao cargo de ministro
Mesmo antes da aposentadoria do ministro Marco Aurélio, foram intensas as movimentações, no mundo jurídico, de possíveis candidatos ao cargo até então por ele ocupado, o que, nesse quesito, não destoa de circunstâncias de processos de indicação anteriores.

Todavia, em meio a um cenário político tão conturbado, observou-se, também, como reflexo dessa situação, uma evidente maior exposição dos atores e integrantes do sistema de Justiça, possíveis candidatos, em se mostrarem sintonizados com a pauta política e de costumes do presidente da República.

Por conseguinte, como consequência dessa estratégia, tem-se, claramente, um reforço dos temas tidos como prioritários ao governo, na esfera do debate político-judicial, por parte dos atores mais destacados desta arena, diante da expectativa estabelecida em torno da escolha.

Sendo assim, mostra-se relevante destacar que esse processo de escolha promoveu, particularmente, uma mais evidente implicação da disputa entre os pretendentes e o encaminhamento dos “humores” no âmbito dos mais diversos órgãos e atores do sistema de justiça.

Os critérios e ações do presidente da República para escolha do novo ministro
Diante do cenário em que se encontra inserido, promoveu o presidente da República, durante todo o processo, como já destacado, o alavanque da intensidade do caráter político dessa escolha, dando a ela contornos bastante definidos e peculiares.

Passou, assim, a inserir a indicação do novo ministro como uma nova rodada do enfrentamento que vem estabelecendo com a corte, em relação a várias questões. Entre elas, no destaque que passou a dar ao perfil do novo ministro, o tema da chamada “pauta de costumes” e a “questão religiosa”.

Entretanto, apesar da ênfase pública dada a essas questões, não são apenas esses os pontos de confronto do presidente da República com a corte e que tem, na presente indicação, a oportunidade do estabelecimento de uma contraposição, por parte do Executivo.

A própria fixação concreta dos limites à ação presidencial, as consequências da sua inflamada retórica de constante questionamento aos regulares procedimentos institucionais estabelecidos no sistema político vigente, como a segurança do sistema de votação eletrônica, a lisura do resultado das eleições (no foco, desde então, tendo em vistas a sua sucessão em 2022), as investigações de membros do seu governo e de sua família, todas essas questões afetas ao STF, encontram-se também no contexto dessa disputa.

Todavia, as questões de cunho moral e religioso têm funcionado como eficiente recurso para a construção da narrativa desse enfrentamento, como centrada em outro campo de debate, o dos valores morais, por parte do presidente da República, dentro de sua estratégia de atuação. Isso porque a introdução dessas questões tende a dificultar, pelo embaçamento do foco do debate, a capacidade de compreensão das demais situações relevantes.

Sendo assim, vem se dando ênfase à necessidade de que seja alçado a ministro pessoa com perfil bastante definido, tido como “terrivelmente evangélico”, indicando-se que se pretende estabelecer, nesse ponto, a centralidade do discurso público do enfrentamento ao Supremo.

Busca-se, desse modo, também por essa frente, com o reforço do caráter político e com o foco na “questão religiosa”, como critério da escolha do novo ministro, fortalecer a já encaminhada ação estratégica de suporte das posições da Presidência da República, dentro do atual cenário de crise institucional.

O escolhido e o destaque dado ao seu perfil tido como “terrivelmente evangélico”
Assim, em meio ao acirrado processo de disputa e diante do delicado quadro em que se encontra inserido, o presidente da República anunciou, recentemente, o nome do atual advogado-geral da União, André Mendonça, para a vaga aberta do Supremo Tribunal Federal.

O escolhido tem se destacado pela defesa aberta de pautas conservadoras e pela atuação fiel aos interesses do presidente, tanto pelas passagens na AGU quanto pelo Ministério da Justiça. Isso mesmo em questões tidas como “não usuais” ou “controvertidas”, como no caso da sustentação oral promovida como AGU, nos autos da ADPF n° 811, que questionava decreto do estado de São Paulo que determinava o fechamento de cultos missas e demais atividades religiosas coletivas naquele estado, tendo como base a ênfase em argumentos fundados em pontos de escritos religiosos. Ou na determinação de instauração de inquéritos policiais em face de críticos do governo, pela Polícia Federal, como ministro da Justiça.

Além disso é o escolhido pastor evangélico. Veio, portanto, sua indicação ao cargo a concretizar o encaminhamento apontado pelo presidente da República, no tocante ao perfil “terrivelmente evangélico”, fixado como critério decisivo dessa escolha e condizente com a estratégia narrativa estabelecida para a definição dos contornos deste específico processo para o preenchimento da vaga, ora em aberto.

O estratégico desvio de foco estabelecido com a dita “questão religiosa”
Tem-se, claro, em meio ao que se mostra estabelecido, que esse processo de indicação do novo ministro do Supremo Tribunal Federal teve como corte peculiar, imposto pelo presidente da República, o direcionamento do debate público para questões de cunho moral e religioso.

É evidente que referidas questões são dotadas da mais alta relevância e que, em seu âmbito, estão inseridas discussões que a todos dizem respeito, posto que relacionadas à proteção de valores e preceitos de grande abrangência, dotados, inclusive, de proteção e relevância constitucional.

Não há nada de errado em indicar ao Supremo Tribunal Federal um ministro “terrivelmente evangélico”, como não haveria em indicar um “terrivelmente umbandista”, um “terrivelmente muçulmano”, ou um que se tenha como “terrivelmente espírita”. São todas essas confissões religiosas que estão firmemente lastreadas no profundo sentimento de religiosidade da maioria dos brasileiros e, especificamente, dos que as proferem. São expressões legítimas da identidade e cultura de um povo e merecem o respeito e a proteção devidos.

Contudo, ao direcionar o debate público relacionado à escolha de um novo ministro do Supremo Tribunal Federal a um recorte com essa especificidade, sem promover a transposição dos seus argumentos, para uma linguagem mais abrangente e inclusiva, reduz, o presidente da República, estrategicamente, a complexidade inerente ao tema.

Fixa-se, assim, uma linha de divisão que não deveria existir, baseada no pertencimento ou não a uma determinada fé. Confunde-se mais do que se aclara. Deixa-se de se promover, na verdade, da forma mais ampla possível, o debate necessário em torno das efetivas implicações que se encontram envolvidas na formação de uma nova composição do STF.

Mostra-se a “questão religiosa”, portanto, para além de um efetivo desvirtuamento dos critérios constitucionais para aferição das condições de um dado postulante à vaga de ministro do Supremo, como recurso estratégico eficiente para o desvio do foco do que deveria estar no centro do debate e dos questionamentos, em torno do referido candidato.

A relevância do papel do Senado no controle político da escolha
Diante de questões tão relevantes, sobressalta-se, nesta oportunidade, o papel do Senado Federal, no processo de escolha do próximo ministro. Isso porque funciona a casa como órgão constitucional de controle jurídico-político da indicação formulada pelo presidente da República.

Historicamente o Senado Federal tem desempenhado função quase que simplesmente homologatória das indicações dos presidentes, nos processos de escolha de novos ministros do Supremo Tribunal Federal.

Contudo, em meio a um contexto como o acima descrito, em que a indicação em questão passa a ter, tanto por movimentações do próprio candidato indicado, quanto por critérios pública e expressamente fixados pelo presidente da República, um caráter primordialmente relacionado a questões outras, para além dos critérios de “notável saber jurídico” e de “reputação ilibada”, previstos como condições para a ocupação do cargo, nos termos da Constituição, restará importante se verificar como funcionará o Senado Federal, no controle político desta indicação.

Qual a resposta que dará o Senado ao movimento político do presidente da República de deslocar o centro do processo de indicação de um ministro do Supremo Tribunal Federal para um critério baseado precipuamente em uma “questão religiosa”?

Como tratarão os senadores o movimento do presidente da República de indicar ao STF, nesses termos, um ministro que, por diversas vezes, traz para o debate jurídico argumentos enfaticamente fundados em escritos religiosos (conforme amplamente divulgado nos meios de comunicação), sem o transplante devido para um contexto centrado em razões públicas?

Qual a posição que adotará o Senado, em relação ao fato de o indicado, quando ministro da Justiça, ter determinado a instauração de investigações, com base na Lei de Segurança Nacional, em relação a críticos do atual governo, conforme se encontra noticiado, amplamente na imprensa, a partir da instauração de notícia de fato, junto à Procuradoria-Geral da República, para apurar a abertura de referidos inquéritos por parte da Polícia Federal?

São questões da mais alta relevância, do âmbito político institucional, e que, acredita-se, deveriam ser abordadas no procedimento de arguição do referido candidato no Senado, de modo a que sejam esclarecidas.

Isso porque referidas questões estão relacionadas à própria capacidade de atuação da corte de forma autônoma, em temas centrais ao regular desenvolvimento do sistema democrático. Assim, o momento sensível, de acentuada crise institucional, coloca o preenchimento da nova vaga sob uma perspectiva de relevância ainda mais ampla, tendo em vista os diversos elementos que compõem o quadro atual da conjuntura posta.

Será, portanto, uma oportunidade para que se observe como responderá o Legislativo, dentro do sistema de “freios e contrapesos” e diante dos desafios postos ao regime democrático, aos contornos que conferiu o presidente da República a esta específica escolha.

A importância do esclarecimento público dos aspectos diversos de um processo de escolha com esses contornos
O presente processo de indicação de novo ministro, para a vaga então ocupada pelo agora ex-ministro Marco Aurélio Mello, encontra-se, portanto, recheado de elementos que exigirão de toda a esfera pública a atenção devida.

Isso porque as questões relacionadas à abordagem dada pelo presidente da República, nesse processo de escolha, constituem pontos que reverberam, de forma sensível, na dinâmica da interação institucional republicana e inerentes ao regular desenvolvimento do regime democrático.

Resta evidenciada a importância da atuação do Senado enquanto instituição de controle político e da representação democrática no processo que se encontra em curso.

Por outro lado, também se mostrará relevante que se observe o grau de atenção que será dispensado ao fato por parte da sociedade em geral e pelos atores institucionais, em especial, dada a relevância do tema e as implicações que estão a ele relacionadas.

Contribuir para o desvendar, ao público em geral, dos intrincados arranjos verificados nas comunicações estabelecidas neste processo, buscando-se alcançar e compreender o que há para além da expressão aparente do discurso sugerido, parece-nos tarefa importante e necessária ao momento.

Por fim, promover uma discussão em que se possa apresentar ao público as múltiplas nuances desse procedimento parece ser um desafio de todos que estejam comprometidos com o aperfeiçoamento das instituições e dos processos democráticos, em meio à crise político-institucional estabelecida.

 é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Pernambuco e membro Fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP.