Arquivos Diários : maio 24th, 2021

Tecendo Esperanças: mulheres negras no Ministério Público

Em tempos de silenciamentos, precisamos tecer Esperanças

Por Cecília Amália Cunha Santos e Elisiane Santos* no GGN 

       Esperança Garcia, mulher negra, escravizada, nasceu por volta de 1751. É considerada a primeira mulher advogada do Piauí. Conforme registros encontrados, no ano 1770, Esperança rompeu o silêncio da opressão, enviando uma petição ao Governador do Piauí denunciando maus-tratos que ela e seu filho sofriam na fazenda em que era escravizada. Cronologicamente, isso faz de Esperança a primeira advogada do Brasil, embora ainda não tenha havido o reconhecimento pelo Conselho Federal da OAB, mesmo com justas reivindicações de juristas negras.

            Perguntamos quantas Esperanças defendem as vidas de seus filhos nas periferias? Quantas Esperanças estão apagadas da história do Direito? Quantas Esperanças conseguem ser ouvidas pelo sistema de Justiça? Quantas Esperanças conseguem ingressar nas instituições?

            Na última quinta-feira, 26 de maio de 2021, 70 mulheres pretas, juristas, de diferentes trajetórias, vindas das mais diversas regiões do Brasil, se reuniram virtualmente para compartilhar histórias de vida e estratégias para ingressar na carreira do Ministério Público do Trabalho. Um quilombo de afeto, de força, de caminhada na escuta, nas dificuldades, nos esforços, na solidariedade, no foco, na determinação, passos que seguem e acompanham nossas vidas desde sempre, nós, mulheres negras, ainda que em diferentes contextos de vida e dimensões de opressão.

            As dores, as lutas, os esforços e as vitórias compartilhadas – entre mulheres que se encontram pela primeira vez -, traz um elo de pertencimento, união e força. Os racismos cotidianos, naturalizados, silenciados, os desafios na construção de identidades, dificuldades econômicas, o questionamento ou o “não lugar” da intelectualidade, conjunto de opressões vivenciados, para além das marcas, constrói um vínculo de afeto, como se formássemos uma mesma família, o que, aliás, é algo nos foi tirado. Famílias inteiras foram separadas no processo de sequestro de nossos antepassados escravizados nessas terras por quase quatro séculos. Somos por isso mesmo uma grande família diaspórica e por isso sempre que nos (re) encontramos, nos (re) conhecemos. Esse é o nosso aquilombar.

            O Tecendo Diversidade[1], surgiu no ano 2019, por iniciativa de um grupo de Procuradoras do Trabalho, que questionava o retrato desigual da composição étnico-racial da instituição Ministério Público do Trabalho, e ao mesmo tempo os resultados pouco efetivos em relação ao primeiro concurso público que estabeleceu cotas raciais (2018) e contou apenas com um candidato negro aprovado. A justificativa para a iniciativa passa pela percepção de que a mera previsão de cotas raciais no edital do concurso não é suficiente a garantir efetivo ingresso das juristas negras. Isso porque as desigualdades que afetam a população negra e influenciam no ingresso nas carreiras jurídicas, especialmente às mulheres negras, vão desde a impossibilidade de realizar cursos preparatórios para concursos (por questões econômicas, responsabilidades familiares ou outros fatores), passando por déficits decorrentes da formação nos cursos de graduação em Direito, até à própria condição subjetiva implicitamente colocada em não ser esse o lugar da mulher negra, periférica, trabalhadora.

            Sobre o tema, o filósofo congolês Bas’ilele Malomalo (2010)[2] aduz que reduzir a questão das ações afirmativas a simples previsões de cotas em leis ou editais não resolve os problemas do déficit de inclusão de pessoas negras na sociedade, pois a questão é complexa e exige um olhar mais amplo para diversos fatores sociais, como déficit educacional, problemas na estruturação familiar, falta de oportunidades profissionais, baixa renda, violência doméstica, entre outros fatores.

A própria Resolução n° 170, de 13 de junho de 2017 do Conselho Nacional do Ministério Público, ao instituir as cotas raciais de 20% nos concursos para membros e membras, aponta a possibilidade de adoção de outras ações afirmativas, em seu artigo 3°: “os órgãos indicados no caput do art. 2° poderão, além da reserva das vagas mencionadas, instituir outros mecanismos de ação afirmativa com o objetivo de garantir o acesso de negros a cargos do Ministério Público, inclusive de ingresso na carreira de membro, bem como no preenchimento de cargos em comissão, funções comissionadas e vagas para estágio”.

Como outros mecanismos a serem observados nos concursos públicos, podemos indicar a revisão das metodologias de avaliação na 2ª e 3ª fases do concurso; promover o acolhimento, formação e preparação para ingresso que leve em consideração as condições desiguais que mulheres negras enfrentam no acesso à carreira; assegurar a participação de juristas negras na composição das bancas de concurso para ingresso nas carreiras do Ministério Público, entre outras.

            As ações afirmativas são fundamentais para o enfrentamento do racismo estrutural, que permeia as instituições no Brasil, e termina por reproduzir práticas racistas, naturalizadas na sociedade, também no sistema de Justiça, seja pela falta de representatividade negra, seja pela própria aplicação do Direito com referências eurocêntricas, tidas como universais, seja pelo silenciamento sobre as questões raciais nas práticas institucionais. Exemplo disso é o não-reconhecimento de mulheres negras na posição de Juízas, Membras do MP, nos espaços institucionais; o tratamento mais rigoroso com testemunhas negras; o estereotipo atribuído aos réus negros; entre tantas outras situações que impedem o enfrentamento do problema enquanto ocultado. E juntamente com isso temos o apagamento sistemático nas formações dos cursos de Direito, nos concursos públicos, nos cursos de formação de juristas, de referências sobre juristas brasileiras negras, sobre a história da defesa de direitos por defensoras da importância de Esperança Garcia[3]. Poderíamos citar Dandara, Akotirene, Luisa Mahin, Laudelina Mello, entre tantas outras, apagadas dos livros de Direito e da formação jurídica.

            Assim, pensando em apoiar juristas negras que pretendem ingressar na carreira, na perspectiva de representatividade e igualdade de oportunidades, mas também e sobretudo na missão constitucional do Ministério Público, prevista no artigo 127 da Constituição Federal de 1988, pautada na defesa da Democracia, nasceu o “Tecendo”. Foram abertas inscrições através do “google forms”, para manifestação de interessadas em apoio nos estudos preparatórios para o concurso e recebidas mais de 300 inscrições. Essas inscrições passaram por uma análise da questão racial e prática jurídica (requisito para ingresso na carreira), além da vulnerabilidade social-econômica. Ao final, foram selecionadas 91 mulheres negras para participar do projeto.

            Inúmeras pessoas colaboraram na elaboração de aulas, correção de questões, concessões de bolsas em cursinhos preparatórios, entre estes 38 membros e membras do Ministério Público do Trabalho gravaram aulas sobre temas relevantes da atuação ministerial. Na primeira fase do concurso, que conta com o maior índice de reprovação, foram aprovadas 9 candidatas do projeto, ou seja, 10% das participantes, índice acima da média geral de aprovação nessa fase. O acompanhamento seguiu e duas integrantes do Projeto, Gleyce Guimarães e Juliana Góis chegaram à prova oral. Medos e ansiedades. E mais um desafio a vencer.

            Durante a preparação para a prova oral, as duas candidatas passaram por simulados semanais, trocas de experiências e acompanhamento psicológico. Uma equipe de psicólogas especializadas em concurso público disponibilizou atendimento a preços sociais a elas e às demais mulheres do projeto, com vistas à elevação da autoestima, empoderamento pessoal e aumento da confiança das candidatas. Isso porque, para a maioria das mulheres negras, o momento da prova oral, no qual ocorre a identificação das candidatas, é cercado por muita insegurança, pois ainda nos custa acreditar que aquele seja um lugar que nos pertence de fato, por isso, o trabalho de empoderamento pessoal e fortalecimento psicológico foi tão relevante para aprovação das duas candidatas.

            Merece destaque o fato de que o “Tecendo Diversidade” é o primeiro projeto voltado à preparação de mulheres negras no Ministério Público a efetivamente aprovar suas participantes, sendo que as duas candidatas já foram nomeadas e hoje exercem lindamente sua missão constitucional em Procuradorias no norte do país, com um olhar atento e diferenciado às necessidades da população negra e subalternizada.

            Com efeito, a participação de pessoas negras no sistema de justiça, ocupando cargos de poder e decisão vai muito além daquilo que chamamos de representatividade. É claro que é importante para toda a sociedade e principalmente para jovens estudantes negras se enxergarem representadas nestes cargos, mas a importância da nossa participação não pode ser resumida a isso. Para efetivação de uma democracia substancial é imprescindível que a voz das mulheres negras e periféricas possa ser ouvida dentro dos mais variados cargos do sistema de justiça, pois as vivências e experiências de realidade são diversas de um perfil hegemônico, muitas vezes distanciado de realidades sociais de populações oprimidas, principal público atendido e que tem seus direitos fundamentais sistematicamente violados. O impacto dessa pluralidade de perspectivas se reflete na forma de atuação, no olhar para o enfrentamento de problemas sociais e, consequentemente, nas soluções apresentadas para proteção aos grupos vulneráveis, como pessoas periféricas, negras e quilombolas.

            O silenciamento das vozes negras dentro do sistema de justiça só interessa para manutenção das desigualdades que tão fartamente percebemos no nosso país. Sobre silêncios, trazemos o pensamento da psicanalista e artista plástica Grada Kilomba (2019)[4], que em sua obra Memórias da Plantação Grada cita o instrumento de tortura utilizado na época da colonização, que ganhou notoriedade graças ao quadro pintado da escravizada Anastácia, a máscara de ferro, um artefato que era composto por um pedaço de metal colocado dentro da boca dos sujeitos negros e amarrado com cordas em torno de sua cabeça e pescoço. Dizem que Anastácia inclusive teria morrido de gangrena em razão da utilização da máscara de tortura utilizada pelos brancos. A justificativa assumida pelo colonizador para o uso da máscara era impedir os escravizados de comer alimentos que não lhes eram destinados e para evitar que os negros comessem terra e cometessem o suicídio, já que muitos preferiam retornar ao orum do que se manterem na condição de escravização. Entretanto havia um terceiro e velado motivo para utilização do artefato de tortura: o silenciamento. Grada questiona, por que a boca do sujeito negro tem que ser amarrada? Por que temos que ficar caladas? O que nós mulheres negras teríamos a dizer sobre a atuação na justiça brasileira se nos fosse possível falar de dentro? O que mudaria no sistema de justiça se a voz das pessoas negras fosse ouvida? E se o sistema de Justiça representasse efetivamente essas vozes silenciadas?

            Segundo censo elaborado pelo MPT (2021), integram a carreira de membros e membras o total de 769 pessoas, entre estas 395 homens e 374 mulheres. No cargo inicial da carreira – Procurador/a do Trabalho – são 309 homens e 300 mulheres. Em relação à composição étnico-racial, no conjunto dos cargos de membros/membras, verificamos, a partir dos dados gerais um total de 18,3% de negros (pretos e pardos)[5]. Apenas nove pessoas (1,3%) se autodeclaram pretas na instituição. O estudo não realizou recorte de gênero/raça, assim não conseguimos aferir o total de mulheres negras, mas tomando por base o recorte de gênero, arriscamos estimar que somos por volta de 8% de mulheres negras. Essa constatação nos traz à reflexão o discurso da “paridade de gênero”, universalista, que, ao não considerar as mulheres negras, termina por exclui-las, reproduzindo o mesmo sistema de opressão[6]. Dois séculos depois de Soujorney Truth[7] nos perguntamos: E não sou eu uma mulher? É imprescindível, portanto, que em toda e qualquer política de equidade de gênero, a questão racial seja considerada.

            Pensar um Ministério Público democrático e plural, importa assegurar a diversidade de gêneros, consideradas as mulheres negras, maior grupo populacional, que concentram em si as opressões de gênero, classe e raça, como já apontavam Beatriz Nascimento[8]Lélia Gonzalez[9] e Ângela Davis[10], muito antes do conceito de “interseccionalidade” ter sido cunhado por Kimberlé Crenshaw[11].

            Embora sejamos maioria da população brasileira não estamos representadas nos espaços de poder e isso diz muito sobre os processos de silenciamento, sobre as práticas institucionais e sobre a urgência em transformar esta realidade. Mulheres pretas, mulheres periféricas, mulheres indígenas, mulheres transgêneros precisam integrar as instituições que lutam por direitos, que defendem direitos, que interpretam e aplicam a legislação.

            No novo formulário de inscrição, questionadas sobre a escolha pela carreira do MPT, as respostas das candidatas focaram principalmente na missão constitucional do órgão em promover justiça social e igualdade material. No aquilombamento dessa semana, ficou claro, pelas falas, que estamos aqui não meramente pelo objetivo de uma carreira, pela representação social de status, poder ou melhor rendimento, mas porque queremos um mundo justo, e, acreditamos que através desse lugar de poder numa instituição que tem por missão defender o regime democrático e os interesses sociais, vamos transformar. E já estamos transformando. Estarmos juntas nesse momento tão difícil, fortalecendo e reunindo esforços para enfrentar o racismo estrutural e institucional no sistema de justiça brasileiro é uma grande luta. E está apenas começando. Começando com vitória e vem muito mais. Pela memória de Esperança Garcia, de nossas ancestrais e de tantas Esperanças defensoras de direitos, vamos Tecendo! Pois como diz um ditado africano: Quando as teias de aranha se juntam, elas são capazes de segurar um leão!

*Cecília Amália Cunha Santos e Elisiane Santos são Procuradoras do Trabalho e integrantes do Coletivo Transforma MP.  

[1] A escolha do nome Tecendo a Diversidade se deu pela percepção de que só uma convergência organizada de vontades, voluntariado e luta seria capaz de criar uma nova e plural realidade na instituição, que, apesar de ter uma atuação forte na defesa da igualdade no mundo do trabalho, é formada quase que integralmente por pessoas brancas[1]. Assim, é necessária uma teia de esforços para tornar efetivo o sistema de cotas e incluir mulheres negras no MPT. In: CUNHA, Cecília. ANABUKI, Luisa. 2021. “Tecendo Diversidade: análise da implementação de ações afirmativas para negros e negras voltadas para um Ministério Público do Trabalho mais colorido e plural”. (no prelo)

[2] MALOMALO, Bas’ilele. Repensar o multiculturalismo e o desenvolvimento no Brasil: políticas públicas de ações afirmativas para a população negra. 2010. Disponível em: <https://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UNSP_d8abaa7aee291a9002cbcaa8b39ed8d8>. Acesso em: 23 Maio. 2021.

[3] https://www.hypeness.com.br/2020/06/a-primeira-advogada-do-brasil-foi-uma-mulher-negra-a-historia-de-esperanca-garcia/

[4] KILOMBA, Grada. Memórias da plantação, episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

[5] Foram consideradas o total 132 pessoas pardas e 9 pessoas pretas, conforme autodeclaração, nos três cargos da carreira: Procurador do Trabalho, Procurador Regional do Trabalho e Sub-Procurador do Trabalho. No último grau da carreira, não há nenhuma pessoa declarada preta.

[6] SANTOS, Elisiane. Mulheres negras no Ministério Públlico brasileiro, por justiça e efetiva representação da sociedade. 2020. https://transformamp.com/mulheres-negras-no-ministerio-publico-brasileiro-por-justica-social-e-efetiva-representacao-da-sociedade/<Acessso em 23/05/2021.

[7] Não sou eu uma mulher?, discurso proferido por Sojourner Truth em 1851 durante uma convenção em Akron, Ohio, Estados Unidos, pelos direitos das mulheres, tornou-se um dos discursos feministas mais importantes de todos os tempos. Nascida Isabella Baumfree em 1797, ela mudou seu nome em 1843 para Sojourner, que significa “peregrina”. Essa brilhante mulher, escrava liberta que se tornou abolicionista e ativista pelos direitos das mulheres, foi a única capaz de responder com vigor os argumentos dos agitadores da convenção que, baseados na supremacia masculina, afirmavam ser uma besteira o sufrágio feminino, dizendo que não fazia sentido uma mulher, que “não conseguia nem subir em uma carruagem sozinha”, querer votar. https://cidadelivre.org.br/index.php/todas-as-noticias-publicadas/15-feminismo/3127-e-nao-sou-eu-uma-mulher-discurso-de-sojourner-truth-em-ohio-em-1851<acesso em 26.07.2020

[8] NASCIMENTO, Maria Beatriz. Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidade nos dias da destruição. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.

[9] Discurso de Lélia Gonzalez, em 1988, no centenário pelo fim da escravidão: “Falar da opressão da mulher latino-americana é falar de uma generalidade que oculta, enfatiza, que tira de cena a dura realidade vivida por milhões de mulheres que pagam um preço muito caro pelo fato de não ser brancas. Concordamos plenamente com Jenny Bourne, quando afirma: “Eu vejo o anti-racismo como algo que não está fora do Movimento de Mulheres senão como algo intrínseco aos melhores princípios feministas”. https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/271077/mod_resource/content/1/Por%20um%20feminismo%20Afro-latino-americano.pdf <acesso em 26.07.2020

[10] Davis, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução Heci Regina Candiani. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016.

[11] CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero.In: Revista Estudos Feministas.v. 10, n. 01. Florianópolis: UFSC, 2002, pp. 171-188.

Ainda sobre Jacarezinho: A realidade que grita!

Contam-se, até o momento, 28 mortes, sendo uma de um policial e as demais, segundo apontam as informações colhidas nas declarações públicas da polícia, de “traficantes”.

Por Fabiano de Melo Pessoa no GGN 

Em meio ao tormento trazido pela persistência da crise sanitária gerada pela pandemia da COVID-19, que já completou aniversário de um ano e que se apresenta como o problema central dos debates em todos os meios de comunicação, as questões que devem ser levantadas a partir dos fatos ocorridos na operação policial em Jacarezinho, Rio de Janeiro, no último dia 06 de maio, ainda ecoam em nossas cabeças e merecem ser repercutidas.

Contam-se, até o momento, 28 mortes, sendo uma de um policial e as demais, segundo apontam as informações colhidas nas declarações públicas da polícia, de “traficantes”.

Na data de ontem, 20.05.2021, informações da imprensa nos dão conta de que, em comunicação ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, a Polícia Civil daquele estado, responsável pela operação informou que a “extrema violência imposta” por facção criminosa e “constantes violações aos direitos fundamentais dos moradores”, teriam sido as razões para a realização da operação, mesmo sob a égide de decisão do STF proibindo operações policiais em comunidades carentes, durante a pandemia.

Apresenta-se, portanto, a garantia de direitos fundamentais como justificativa para a realização de operação para dar cumprimento a mandados de busca e apreensão e de prisão, naquela data e na localidade indicada e que resultou em número tão elevado de mortes.

Seria esse propósito inicial, a defesa de direitos fundamentais, apresentado ao Ministério Público, compatível com o resultado obtido ao final da referida operação?

Ora, parece-nos haver uma contradição inconciliável entre a expressão narrativa que se pretende empregar como justificativa da realização da ação, mesmo diante das restrições de operações deste tipo, em meio ao estado de calamidade pública, decorrente da Covid – 19, conforme decidido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, de Relatoria do Ministro Edson Fachin, no STF, e os seus resultados práticos efetivos.

A decisão, em seus termos, deixa claro que só excepcionalmente se poderá ter uma intervenção massiva de forças policiais, nas comunidades mais carentes, durante a pandemia, tendo em vista o comprovado risco de que referidas ações possam incorrer em consequências não suportáveis, neste momento, aos que ali estão vivendo.

Pois, não há como não nos saltar aos olhos e, por conseguinte, nos causar forte impacto que ação voltada para a efetivação de direitos fundamentais dos moradores da referida comunidade, expostos que estariam (e que de fato costumam estar) a extrema violência imposta por facção criminosa ali dominante, se exteriorize de forma igualmente tão violenta e que apresente, como resultado, a morte de 28 pessoas, a maioria delas, com exceção do policial morto, presume-se, membros daquela mesma comunidade, seja qual for o qualificativo jurídico-penal que possa ser atribuído a eles, após a análise de suas fichas corridas.

Não há como não se chegar, partindo-se desta evidente contradição entre a narrativa apresentada e o resultado prático obtido, a questionamentos sobre a efetividade de uma política de enfrentamento ao crime, cuja fundamentação expressa tem como objetivo a garantia do exercício de direitos fundamentais, mas que ao final torna ainda mais aguda a situação de vulnerabilidade deste grupo de pessoas, com a exposição delas a uma prática de intervenção massivamente violenta, com todos os riscos e danos, justamente, aos que se encontram nestas comunidades, que daí decorrem.

A conclusão a que se pode chegar é que algo não está funcionando no caminho trilhado. Há uma evidente distorção entre os objetivos apontados e os resultados obtidos.

Na esfera do disperso debate público, contudo, impulsionado a milhares de “cliques” nas diversas redes sociais, os efetivos custos impostos aos moradores destas comunidades parecem não ser percebidos ou, ao final, tidos como “consequências inevitáveis” desta “guerra” entre “bandidos” e mocinhos”.

Porém, referidos custos haveriam de ser tidos como não razoáveis, inclusive, no que se refere aos agentes policias envolvidos. São crescentes os números de mortes de agentes do sistema de segurança em ações de confronto direto.

Perdem-se, nesta “guerra”, tantas vezes, a vida de jovens dedicados a uma causa que acreditam ser a da justiça. Todavia, ao serem expostos como “pontas de lança”, à execução de uma política pública que pouco tem sido pensada no que se refere a uma lógica de obtenção de resultados que se mostrem compatíveis com objetivos mais claramente aferíveis, como a pacificação social, o bem-estar da comunidade, a inclusão dos que se encontram em situação de vulnerabilidade, a construção de melhores condições de vida e, por conseguinte, da tão buscada segurança, carece de uma fundamentação consistente e convincente, quanto à maneira que vem sendo encaminhada, em face dos resultados claramente insatisfatórios no alcance destes objetivos concretos.

Parece-nos, a este estágio de coisas em que nos encontramos, que o barulho produzido pelos incessantes ataques desferidos a todos aqueles que apontam para o descompasso entre as narrativas da necessidade de defesa de uma política de desordenado enfrentamento à criminalidade, introjetada em ações violentas, supostamente em consonância com o que se costuma indicar como a doutrina da “lei e da ordem” (com todas as contradições que essa expressão possa implicar e, ademais, como se alguém fosse contra a proteção ao direito à vida, à garantia das liberdades individuais, a uma convivência mais harmoniosa e pacífica, etc) tem impedido que se possa enxergar o quão desastrosos são os resultados obtidos e, portanto, o somatório final deste tipo de abordagem, para o alcance mesmo de qualquer estado de pretendida “segurança pública”.

Os números, de mortes, de casos de violência, de prisões, não param de crescer. Há de haver uma reflexão quanto ao resultado obtido, até agora.

Costuma-se, então, ao amplo espectro da arena virtual do debate público, quando da análise de eventos deste tipo, dividir as pessoas entre aqueles que são “defensores de bandidos” e os que estão do lado da “polícia”. Mais recentemente, com os novos impulsos divisionistas de cunho ideológico, requenta-se a distinção entre “esquerdistas” e a “direita”, buscando apresentar aqueles como defensores da desordem, da tão propalada “balbúrdia” e esta, como a guardiã da “ordem” e dos “bons costumes”.

Ficam, à margem, todavia, para além da divisão ideológica, dicotomias que se mostrariam bastante pertinentes ao debate, como, “democratas” e “não democratas”. “Negacionistas” e “não negacionistas”. Aqueles que tem na análise dos dados e fatos, o ponto de partida para suas discussões e os que não estão dispostos a ter esta premissa como importante.

Falar da importância de um exercício autocontido, posto que consciente dos limites que lhe são necessários, e do contínuo controle da atividade policial, em momentos como esse, passa a ser logo tachado como algo “ofensivo” aos policiais e, por conseguinte, aos interesses da comunidade. Toda a reflexão crítica sobre os resultados práticos de uma política criminal calibrada na “ponta do fuzil” passa a ser tida como falta de solidariedade para com os agentes de segurança pública, quando, não é tida como “alinhamento” com a “bandidagem”.

E, assim, caminhamos a passos largos, ainda mais profundamente, a um estado de coisas de conflitos e tensões que não nos permite a efetiva compreensão dos graves fatos que temos pela frente.

Produz-se, na verdade, à custa do sofrimento de todos aqueles que estão expostos aos efeitos práticos de ações com expressão tão violenta, um sentimento de ainda mais insegurança. E, com base neste medo constante, uma retórica que gesta discursos cada vez mais virulentos e desconectados com as causas reais do estado de violência e insegurança que nos deparamos.

Ora, tudo isso parece tão patentemente absurdo mas, ao mesmo tempo, tão efetivamente presente no momento em que nos inserimos, no mundo de hoje, que nos leva a uma grande desesperança quanto à possibilidade de uma desobstrução próxima do ambiente do debate público, quanto a estas questões.

Como pode?

Precisamos, de modo urgente, buscar apresentar, da forma mais clara e objetiva possível, para que possa ser efetivamente compreendido, as contradições deste conjunto de fatos e circunstâncias. Apontar o desequilíbrio dos resultados danosos colhidos pela execução de uma política pública, no campo da “segurança”, em descompasso com uma melhor compreensão dos fatores reais da violência e o deficit de encaminhamentos capazes de gerar ações voltadas para efetivas soluções.

E ocupar, com informação, consistente e aferível, este vasto espaço gerado pelo vazio e desilusão decorrentes da onda barulhenta e feroz que se regozija com a dor e que nos vê, a todos, como engajados em posições estanques, que não se comunicam, em uma guerra que não tem nos levado a lugar algum.

Fabiano de Melo Pessoa é Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Pernambuco Membro Fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP