Arquivos Diários : setembro 29th, 2020

Justiça do Trabalho e a deriva entrópica da sociedade brasileira

 

Por Rodrigo de Lacerda Carelli¹ no Jota 

A Justiça do Trabalho e a deriva entrópica da sociedade brasileira Contramão entre decisões no Brasil e no mundo demonstra que a sociedade e a Justiça do Trabalho brasileiras rumam ao caos.

Na manhã do dia 23 de setembro, abro as redes sociais e me deparo com uma notícia alvissareira: o Tribunal Supremo da Espanha seguiu a tendência já delineada pelas cortes inferiores e considerou entregadores de plataforma como empregados.

Minha esperança por um mundo mais justo se desfez um pouco quando logo em seguida me deparo com outra notícia que me trouxe de volta para a minha realidade de brasileiro em meio ao caos de uma pandemia: juíza do trabalho de São Paulo negou os pedidos de proteção frente ao coronavírus para trabalhadores de plataforma de transporte de pessoas.

A divulgação no mesmo dia, quase que de forma simultânea, de duas decisões tão díspares, tanto em relação à percepção da realidade enfrentada pelos trabalhadores em plataforma, quanto pelo entendimento do que significa o direito e justiça, em especial a do trabalho, me faz questionar se a Justiça do Trabalho está em uma deriva um tanto perigosa, afastando-se de seu design original. As decisões parecem ter sido emanadas não somente por órgãos diferentes em continentes diversos, mas em mundos apartados, em dimensões distintas.

A decisão do Tribunal Supremo espanhol seguiu uma tendência já delineada pelo seu equivalente francês, a Corte de Cassação da França, de que há o vínculo empregatício entre trabalhadores de plataformas e as empresas que exploram o serviço.

No caso concreto espanhol, estava sendo julgada a relação entre um entregador e a empresa Glovo. O Tribunal entendeu, em consonância com o que a jurisprudência da Corte de Justiça da Comunidade Europeia decidiu em relação à Uber, que a plataforma não é uma mera intermediária na contratação de serviços entre comércios e entregadores, mas sim que é uma empresa de mensageria e entregas, que fixa as condições essenciais para a prestação desses serviços.

Para realizar seu negócio, ela contrata entregadores que não dispõem de organização empresaria própria e autônoma, e que prestam serviços inseridos na organização de trabalho do empregador. Foram identificados como existentes os elementos da relação de emprego, em especial a dependência e o trabalho por conta alheia.

A questão, assim, chega praticamente ao fim na Espanha, que deve proximamente regular a situação na forma já modelada pela jurisprudência firmada, sendo que os trabalhadores receberão a proteção do direito do trabalho a eles devida como empregados que são.

Já a decisão brasileira foi tomada pela 55ª Vara do Trabalho de São Paulo em ação civil pública ajuizada pelo Sindicato dos Trabalhadores com Aplicativos de Transporte terrestre Intermunicipal do Estado de São Paulo em face da 99, pela qual buscava-se a tutela judicial para a implementação de várias medidas de proteção em relação ao coronavírus, como disponibilização de álcool em gel, máscara facial, luvas, higienização de veículos e afastamento remunerado dos trabalhadores em grau de alto risco.

Já na análise da competência da Justiça do Trabalho, a magistrada deixa claro que a relação entre os trabalhadores e a plataforma seria de trabalho em sentido amplo, e não a de emprego. A juíza, ao passar a julgar o mérito da causa, firma que “é fato notório que a empresa já vem tomando diversas medidas voltadas à redução dos riscos de contaminação por parte de seus motoristas e clientes”, tomando como prova o sítio eletrônico da empresa (!) e que a plataforma já vem fornecendo equipamentos (não há indicação de elementos para essa afirmação) e que a empresa, “por sua proprietária chinesa, criou um fundo para apoiar motoristas parceiros diagnosticados com ‘coronavírus’, incluindo os que atuam no Brasil, através do qual concede um auxílio financeiro àqueles que tiveram a suspensão temporária de sua conta, por terem sido diagnosticados com a doença ou ter recebido recomendação médica de quarentena em razão da Covid-19.” (sic)

Com base então nas informações da empresa, a juíza julgou improcedentes os pedidos da ação e, ainda, com requintes de crueldade, indeferiu a Justiça gratuita e condenou o sindicato a honorários sucumbenciais de R$ 1.369.650,00, mais custas de R$ 24.000,00.

Não se sabe se a juíza ignora a lei, não deveria nem poderia ignorá-la, mas a lei de ação civil pública é expressa em dizer que não pode haver condenação da associação autora, salvo comprovada má-fé, em honorários de advogado, custas e despesas processuais (art. 18).

Ou seja, a crueldade salta aos olhos não somente pela ilegalidade patente da decisão, mas porque, além disso, inviabiliza economicamente para sempre o sindicato de formação recente pelo fato de – ousadia suprema! – ajuizar ação para a defesa da saúde e vida de seus representados.

Os rumos das duas decisões são flagrantemente opostos. O Poder Judiciário de uma nação toma sempre a feição de sua própria sociedade. A Espanha toma a via da civilização, do mundo dos direitos, recompondo uma vida em comunidade que se desajustou e colocou cidadãos sem os direitos devidos.

O Brasil toma a via do caos e da destruição, da morte e da desproteção, deixando os trabalhadores à míngua, dependentes de sua própria sorte ou do que as empresas prometerem em seus sites de internet. A Espanha volta a considerar os trabalhadores como sujeitos de direito, enquanto no Brasil os sujeitos são despidos de seus direitos mais básicos que são a saúde e a vida.

A segunda lei da termodinâmica afirma que a entropia tende a crescer com o tempo em sistemas isolados. Ou seja, o mundo tende a se desorganizar e se direcionar para o caos. A neguentropia, por seu lado, é um conceito da biologia que verifica que dentro de determinados sistemas, como por exemplo corpos de seres vivos, há um grau de equilíbrio e desenvolvimento organizacional que controla a tendência de entropia, ou seja, de caos, como por exemplo a manutenção da temperatura corporal estável, mesmo com oscilação de temperatura no exterior.

A nossa sociedade está em um processo acelerado e descontrolado de entropia, multiplicando-se o caos em todas as áreas, justamente pela falta de esforço neguentrópico ambiental, de saúde, de educação etc. A Justiça do Trabalho, deixando a sociedade agir sem limites, não serve como elemento neguentrópico, que é justamente o objetivo principal para o qual foi desenhada, necessário para manter um nível mínimo de ordem nas relações de trabalho e, consequentemente, na sociedade brasileira. Já a justiça espanhola, em esforço neguentrópico, tenta restaurar o equilíbrio da vida em sociedade na Espanha, afastando ou impedindo a expansão do caos.

A tendência inercial é o caos. Há a necessidade premente que as instituições brasileiras voltem a servir como elementos neguentrópicos, sob pena de não sobrar mainada em pouco tempo. E isso, mais do que nunca, se aplica à Justiça do Trabalho. Espero poder voltar a abrir as redes sociais pelas manhãs e ler que as instituições brasileiras, em especial a Justiça do Trabalho, estão a serviço do equilíbrio, e não do caos em nossa surrada sociedade.

1- RODRIGO DE LACERDA CARELLI – Procurador do Trabalho no Rio de Janeiro e professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

O autoritarismo brasileiro e o Pacto Federativo

Por Rômulo Moreira¹ no GGN 

Ora, evidentemente, e apesar do (incrível) entendimento de um dos ministros da Suprema Corte, não se compatibiliza com os princípios de uma república federativa uma verdadeira “intervenção” federal como a que foi levada a cabo neste caso.

No início deste mês, a União, por meio da Portaria 493/2020, editada pelo Ministério da Justiça e de Segurança Pública, determinou, autoritária e unilateralmente, o envio da Força Nacional de Segurança Pública para dois municípios baianos: Prado e Mucuri. O Estado da Bahia, evidentemente, inclusive por não ter sido solicitada alguma ajuda federal, interpôs junto ao Supremo Tribunal Federal a Ação Cível Originária nº. 3427, distribuída ao ministro Edson Fachin, que impôs, em decisão liminar, a retirada, no prazo de 48 horas, de todo o contingente da Força Nacional mandado ao local.

A “intervenção” federal dar-se-ia no período de 3 de setembro a 2 de outubro e seria feita, supostamente, para dar apoio ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento no cumprimento de mandado de reintegração de posse em dois assentamentos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.

Segundo constou na ação interposta pela procuradoria-geral do Estado da Bahia, “apesar da operação ter sido autorizada para a preservação da ordem pública e da incolumidade de pessoas e patrimônios, não há qualquer indício de conflitos sociais, desestabilização institucional ou riscos de outra natureza que justificassem a medida”, razão pela qual “a Força Nacional teria sido mobilizada para intervir na segurança pública do estado de forma desarrazoada e violadora de sua autonomia federativa.”

Na sua decisão de natureza liminar, o relator afirmou que o art. 4º. do Decreto nº. 5.289/2004, quando dispensa a anuência do governador no emprego da Força Nacional, viola o princípio da autonomia estadual. Este dispositivo prevê que a Força Nacional pode ser empregada mediante solicitação expressa do governador ou de ministro de Estado. Nada obstante este dispositivo normativo, e conforme observado pelo ministro Fachin, a jurisprudência da Suprema Corte consolidou-se no sentido da autonomia dos Estados, desautorizando o disposto no referido decreto.

Segundo consta da decisão monocrática, “a definição dos contornos de um federalismo cooperativo pressupõe que os entes federados sejam permanentemente protegidos contra eventuais tendências expansivas dos demais.” Ademais, conforme também ressaltado pelo relator, a Lei nº. 11.473/2007 estabelece a necessidade de um convênio entre as partes sempre que houver a necessidade de uma operação dessa natureza. Assim, nos termos da decisão preliminar, seria “necessária uma concorrência de vontades para que não se exceda o limite constitucional de proteção do ente federado.”

Por fim, justificando ainda a liminar, o relator referiu-se aos “enormes riscos para a estabilidade do pacto federativo, acrescidos ainda das circunstâncias materiais da ação, isto é, o exercício dos poderes inerentes à segurança pública e o possível uso da violência”, lembrando também que o “quadro geral de pandemia da Covid-19 exige que a mobilização de contingentes de segurança seja sensivelmente restrita e sempre acompanhada de protocolos sanitários.”

Após a concessão da liminar, já na sessão realizada no último dia 24 de setembro, e por maioria de votos, o plenário do Supremo Tribunal Federal referendou a decisão do ministro relator, confirmando a necessidade da retirada de todo o contingente da Força Nacional enviado aos dois municípios baianos, firmando-se, doravante, o entendimento que “a utilização da Força Nacional sem a autorização do governador viola o princípio constitucional da autonomia dos estados.”

Inacreditavelmente, apenas o constitucionalista Luís Roberto Barroso considerou legítimo que a Polícia Federal solicite o auxílio para proteger o patrimônio da União, invocando o art. 4º. do Decreto nº. 5.289/2004, que autoriza a atuação da Força Nacional por solicitação de governador ou de ministro de Estado, não havendo, segundo ele, violação da autonomia dos entes federados. Vê-se que se trata-se de dispositivo claramente inconstitucional, ao menos quando autoriza o envio da Força Nacional apenas a partir da iniciativa de Ministro de Estado, e sem anuência do chefe do Executivo local.

Ora, como se sabe, e segundo se depreende do art. 18 da Constituição Federal, a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, entidades autônomas que formam a estrutura federativa brasileira. Estes entes federados detêm autonomia, seja em razão da existência de um governo local (com órgãos governamentais independentes da União), seja porque possui competências exclusivas, com plena capacidade normativa a respeito de determinadas matérias (neste sentido, veja-se, dentre outros, os arts. 17, 23, 24, 25, 29, 42 e 32, da Constituição Federal).

Apenas se admite a quebra do equilíbrio federativo, muito excepcionalmente, no caso de intervenção federal nos Estados e no Distrito Federal, e dos Estados nos Municípios, nas situações expressamente previstas nos arts. 34 a 36 da Constituição. Esta medida extrema – que, de toda maneira, fere a autonomia federativa, mas está prevista na própria Constituição -, afastando temporariamente a atuação das entidades federadas, “só há de ocorrer nos casos nela taxativamente estabelecidos e indicados como exceção ao princípio da não intervenção.”[2]

Esta autonomia dos entes federativos, como é evidente, decorre da própria concepção de federalismo que, em razão de “sua envergadura histórica e sociológica, é uma tendência natural da organização social, sendo, por isso, mais amplo do que qualquer ordem jurídica ou mesmo política.”[3]

Neste modelo, como diz também Afonso Arinos, são mais valorizadas “as relações de coordenação do que as relações de subordinação”, afinal “toda centralização tende à subordinação, e, consequentemente, à hierarquia e à disciplina rígidas.” Para ele, neste aspecto específico, o federalismo é um verdadeiro “processo de garantia da liberdade, desde que levada a efeito dentro da ordem jurídica e dentro de um esquema geral intangível.”[4]

Também abordando o mesmo tema, ainda que sob a ótica da ordem jurídico-constitucional inaugurada pela Constituição de 1946, anota Pinto Ferreira que “a verdadeira doutrina a explicar o regime de relações entre a União e os Estados-membros é a teoria da descentralização política, consistente na repartição de competências entre os órgãos centrais e os órgãos locais.”[5]

 

Também comentando a Constituição de 1946, Pontes de Miranda afirmava que “no Estado federal a união é permanente, ou baseada no que quiseram os Estados-membros, ou no que o povo dele, Estado federal, que antes não o era, quis. E a verdade histórica e doutrinária, a respeito do Brasil, é a última.” Para ele, nada obstante, a federação não ser uma mera medida técnica de descentralização, nela “cada parte tem (ainda imaginariamente) o seu status e perde algo dele em proveito comum”, conferindo-se aos Estados-membros um pouco do que era central.”[6]

Na doutrina estrangeira, destaca-se Häberle, para quem o Estado federal “é uma estrutura constitucional que frequentemente é entendida como mero ´princípio da organização estatal`, mas que hoje constitui um princípio material essencial da Constituição da cultura.” Para ele, “a estrutura do Estado federal é parte integrante do Estado constitucional.”[7] Ainda analisando o princípio federativo, e desde o ponto de vista da Alemanha unificada, Häberle destaca com um dos seus pilares exatamente “a distribuição de competências entre a Federação e os Länder, como uma ´importante manifestação do princípio federativo… e ao mesmo tempo como elemento de uma divisão funcional adicional dos poderes. Esta manifestação distribui o poder político e estabelece um marco jurídico-constitucional para seu exercício.`”[8]

Ora, evidentemente, e apesar do (incrível) entendimento de um dos ministros da Suprema Corte, não se compatibiliza com os princípios de uma república federativa uma verdadeira “intervenção” federal como a que foi levada a cabo neste caso. Aqui, sem dúvidas, reflete-se o caráter autoritário de um governo que, de mais a mais, parece ignorar os laços democráticos e republicanos que devem unir as relações entre a União e os Estados.

Deve ser veementemente afastada qualquer tentativa – ainda que eventualmente respaldada por um dispositivo normativo inconstitucional – de intromissão federal nas coisas pertinentes à competência do Estados, ainda mais quando o próprio ente federativo dispensa tal ajuda, tratando-se, sem dúvidas, de um traço autoritário na condução do governo, como se tem visto em outras oportunidades.

Aqui, por óbvio, utiliza-se o substantivo autoritarismo (respaldando-se na lição de Bobbio, Matteucci e Pasquino) em dois dos seus possíveis contextos: como uma disposição psicológica a respeito do poder e como uma manifestação de uma ideologia política.[9] No sentido psicológico, e sob certo aspecto, pode ser identificada uma personalidade autoritária quando há uma “disposição em tratar com arrogância e desprezo os inferiores hierárquicos e em geral todos aqueles que não têm poder e autoridade.”[10]

Por fim, e muito a propósito do caso brasileiro, é necessário ter em conta que o autoritarismo, muitas vezes, “conquistou adeptos pelo que fez e não apenas pela imagem que apresentou a si mesmo. Ainda mais que muitas dessas grandes ‘conquistas` tivessem um alto preço a ser pago mais tarde, no curto prazo elas possibilitaram que a ditadura se estabelecesse, prosperasse e ficasse mais ambiciosa.”[11] É preciso, portanto, atenção!, ainda mais levando-se em consideração as últimas pesquisas…

[1] Rômulo de Andrade Moreira, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, membro do Coletivo Transforma MP e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.

[2] SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 460. .

[3] FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Curso de Direito Constitucional Brasileiro, Volume I. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 156.

[4] Idem.

[5] PINTO, Ferreira. Princípios Gerais do Direito Constitucional Moderno, Tomo II. São Pulo: Saraiva, 1962, p. 645.

[6] MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1946, Volume I. São Paulo: Max Limonad, 1953, p. 299.

[7] HÄBERLE, Peter. El Estado constitucional. Lima: Fondo Editorial, 2003, pp. 263-264.

[8] Obra citada, p. 264. Länder é o nome que se dá aos Estados federados na República da Alemanha. Evidentemente, não importa o nome que se lhe dê, mas a autonomia que se lhe concede. Na Argentina, por exemplo, são províncias, na Suíça são os Cantões, etc.

[9] Numa terceira acepção, segundo os autores, autoritarismo serviria para designar a própria estrutura do sistema político. (BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política, Volume 1. Brasília: Editora UnB, 1997, p. 94).

[10] Idem.

[11] GELLATELY, Robert. Apoiando Hitler – Consentimento e coerção na Alemanha nazista. Rio de Janeiro: Editora Record, 2011, p. 392.