Arquivos Diários : julho 20th, 2020

10 anos do Estatuto da Igualdade Racial: o atraso da reparação persiste

Por Cecília Amália Cunha Santos* e Ana Lucia Stumpf González**

O dia 20 de julho de 2020 marca uma década de existência do Estatuto da Igualdade Racial. A lei que tem por objetivo garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica chegou com 122 anos de atraso, já que a abolição da escravidão, em 1888, não contemplou nenhuma medida de reparação. A abolição trazia liberdade, mas não garantia justiça, inclusão social ou qualquer ação de reparação histórica pelos anos de escravização.

O Brasil ainda reluta em reconhecer que sua conformação social está baseada no racismo estrutural. O mito da democracia racial, que fala de um país idílico onde três raças se miscigenaram em harmonia, legando cada qual uma contribuição cultural que deu origem a instituições cultuadas, a exemplo da música brasileira, do carnaval e da culinária não passa mesmo de um mito.

No país onde ninguém é racista, “muito pelo contrário”, o que se vê nas estatísticas é a evidente manutenção de um sistema opressor: a população negra é a principal vítima de assassinatos, tem menos acesso a empregos bem pagos e suporta uma brecha salarial gigantesca entre homens brancos e mulheres negras (44,4%, segundo o IBGE). A política de encarceramento também atinge desproporcionalmente a população negra. Segundo o Infopen (sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro), em 2018, 61,7% dos presos eram pretos e pardos. Entre as mulheres, esse percentual sobre para 68%.

O Estatuto da Igualdade Racial foi concebido para fortalecer políticas públicas com vistas a corrigir essas desigualdades e possui diversos instrumentos para garantir essa finalidade. Entre esses instrumentos, estava a criação do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir), com objetivo de organizar e articular as iniciativas voltadas à implementação do conjunto de políticas e serviços destinados a superar as desigualdades étnicas existentes. Essas políticas seriam desenvolvidas pelo poder público federal, mas com possibilidade de adesão pelos estados e municípios, o que permite realizar um processo de capilarização das políticas de promoção de igualdade racial. A atuação federativa integrada tinha por base a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR), igualmente criada pelo Estatuto.

Após a promulgação do Estatuto, o Governo Federal iniciou a implementação da PNPIR, com a criação da SEPPIR – Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, em 2003.  A SEPPIR, inicialmente vinculada à Presidência da República, contava com o apoio administrativo do Ministério da Justiça. A SEPPIR tinha como missão promover o diálogo permanente dentro do Governo com os movimentos sociais negros civis, e com todas as esferas da administração pública, e, além disso, se propunha a promover políticas públicas voltadas à promoção da igualdade racial, que visassem o enfrentamento ao racismo e a criação de mecanismos que assegurassem o acesso da população negra à cidadania e direitos sociais, articulando  os  Ministérios do executivo federal e os demais órgãos federais, Estaduais, Distritais e Municipais, no intuito de dar concretude à natureza transversal e intersetorial de suas ações.

Nesse contexto, várias ações afirmativas foram criadas pelo SEPPIR como forma de realizar o seu escopo. A relevância da SEPPIR era de tal monta na luta por igualdade racial, que, citando apenas a área de educação, segundo dados da publicação – SEPPIR, Promovendo Igualdade Racial (BRASIL , 2016, pag. 44), temos que  a SEPPIR atuou na implementação da Lei 10.639/03 (que prevê o ensino da história e cultura africanas em todos os níveis de ensino), no desenvolvimento do Programa de Desenvolvimento  Acadêmico  Abdias  Nascimento,   no  desenvolvimento do Programa Institucional de Iniciação Científica nas Ações Afirmativas (PIBIC- AF), desenvolvimento do Programa de Extensão    Universitária    (PROEXT), na criação do Selo  Educação  para  a  Igualdade  Racial,  na implementação do  Projeto  A  Cor  da  Cultura, nos Cursos Gênero e Diversidade  na  Escola  (GDE)  e  na  Gestão  de  Políticas  Públicas  em  Gênero  e  Raça. Todavia, na área da Educação, a principal ação afirmativa articulada pela SEPPIR foi a aprovação da Lei n°12.711, de 2012 (que instituiu o sistema de cotas no ensino superior).

Outro exemplo de ação afirmativa desse período foi a edição do Decreto 6.040/2007 que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento   Sustentável   dos   Povos   e   Comunidades   Tradicionais (PNPCT)(BRASIL, 2007). A Referida política, segundo Júlio Rocha (2015, p. 18), tem por objetivo principal promover o desenvolvimento sustentável, para tanto, estabelece como diretriz o reconhecimento, fortalecimento e garantia dos territórios tradicionalmente ocupados por estes povos, com vistas a assegurar seus direitos sociais, econômicos, ambientais e culturais.

Outra das grandes conquistas da SEPPIR foi referente aos direitos sociais da mulher negra, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 72, de  2013 – a PEC das Domésticas, uma grande vitória para população negra, uma vez que, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em pesquisa realizada no ano de 2018, 63% de trabalhadoras domésticas são mulheres negras. Ainda, no contexto de promoção da valorização da mulher negra, a SEPPIR promoveu a criação, por meio da Lei nº 12.987, do Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, comemorado no dia 20 de julho. Segundo o dossiê Mulheres Negras – retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil, publicado pelo Ipea, em 2013 as mulheres negras eram as que mais sofriam com a discriminação racial, a violência doméstica e a falta de oportunidades de estudo e crescimento profissional (BRASIL, 2016, pag. 44).

Citamos apenas esses exemplos, enfatizando que a atuação da SEPPIR foi muito mais ampla, envolvendo todas as temáticas afetas aos interesses população negra, como intolerância religiosa, acesso a saúde entre outros temas.

Apesar de tantos avanços no tocante à promoção de igualdade racial, a SEPPIR foi extinta pela MP 768/17 junto com outras cinco Secretarias: Políticas para as Mulheres (SPM), Direitos Humanos (SDH), Direitos da Pessoa com Deficiência, Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa e dos Direitos da Criança e do Adolescente, pelo Governo de Michael Temer.

Deste então, houve apenas retrocessos nas políticas de igualdade social e de apoio à população negra. Durante nossa pesquisa para este texto, tentamos consultar informações sobre a implementação do Sinapir – sistema que ainda continua vigente, visto que o Estatuto da Igualdade Racial não foi revogado, tampouco o microssistema antirracista previsto na Constituição da República, de 1988 (art. 3ª, inc. IV, art. 5º, inc. XLII, arts. 215, 216 e 241 e art. 68 da ADCT), além das várias normas internacionais que visam combater o racismo a discriminação e a desigualdade racial – mas, infelizmente, a página se encontra fora do ar no site do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A ausência dos dados decorre do claro desmonte do Sistema de Promoção previsto do Estatuto, ocorrido ao longo dos governos que se seguiram, a partir de 2016.

Ao contrário do que se busca propagar em algumas instâncias da administração federal, ainda temos muito a avançar no combate ao racismo estrutural, como, por exemplo, na questão referente à representatividade, pois o Estatuto, ao prever acesso a direitos fundamentais, como saúde, educação e cultura, moradia e liberdade de culto, pretende ser um instrumento de valorização e visibilidade. Os 55% de brasileiros pretos e pardos ainda não estão proporcionalmente representados em produções audiovisuais e sua presença em programas de televisão, embora tenha crescido nos últimos anos, não alcançou consolidação suficiente para naturalizar a presença dos corpos negros em lugares de destaque e protagonismo.

Se o Estatuto chegou tarde, é preciso compensar esse atraso com a sua imediata aplicação e conhecimento. Enquanto permanecer um ilustre desconhecido entre intelectuais e governantes, de pouco servirá o potencial transformador de seu conteúdo. É preciso estudá-lo e colocá-lo em prática. Nas escolas, nos tribunais, na mídia, nos espaços de debate. O Brasil pode ser, de fato, o país da democracia racial. Para isso, precisa reconhecer seu racismo estruturante e desconstrui-lo.

 

BRASIL. Ministério das Mulheres e Igualdade Racial da Juventude e dos Direitos Humanos. SEPPIR, Promovendo Igualdade Racial. Brasília, 2016. Disponível em: Hiperlink, http://flacso.org.br/files/2016/10/seppir-promovendo-a-igualdade-racial-para-um-brasil-sem-racismo.pdf. Acesso em: 17de julho de 2020.

 

BRASIL. LEI Nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial; Disponível em: Hiperlink, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm. Acesso em: 17 jul. 2020.

 

ROCHA, Júlio César de Sá. DIREITOS, GRUPOS ÉTNICOS E ETNICIDADE: Reflexões sobre o conceito normativo de povos e comunidades tradicionais. In: Julio César de Sá Rocha e Ordep Serra (Org.), Direito ambiental, conflitos socioambientais e comunidades tradicionais (p. 13). Salvador: Edufba, 2015.

*Cecília Amália Cunha Santos é Procuradora do Trabalho e Representante Regional da Coordigualdade no Tocantins e integrante do Coletivo Transforma MP

**Ana Lucia Stumpf González é Procuradora do Trabalho e Vice Coordenadora Nacional da Coordenadoria de Combate à Discriminação e Promoção da Igualdade do Ministério Público do Trabalho (Coordigualdade)

A nossa rinocerontite aguda

Diálogos de obra de Eugène Ionesco poderiam muito bem ter se passado no Brasil atual, especialmente se o tema for o cenário político

Por Rômulo Moreira* no GGN

Eugène Ionesco, um dos maiores e mais prestigiados dramaturgos franceses de todos os tempos (de origem romena), dos mais importantes teatrólogos do século e um dos criadores do Teatro do Absurdo, em 1959 escreveu a peça O Rinoceronte[1], mais uma de suas geniais criações, onde descreve o surgimento, numa pequena cidade imaginária, de uma epidemia, a “rinocerontite”, algo como aconteceu por aqui, recentemente (e, por óbvio, não me refiro à pandemia).

O Rinoceronte, como o próprio Ionesco admitiu ao escritor francês Denis de Rougemont, constituiu-se numa grande sátira ao nazismo e, em geral, à alienação política, e é de uma atualidade impressionante. Os diálogos entre as personagens são conversas que poderiam ter sido muito perfeitamente travadas nos dias de hoje, aqui no Brasil, especialmente se a discussão tratasse de analisar o cenário político no qual vivemos, mais particularmente a partir dos últimos três anos.

A história, repleta de diálogos nonsense, como em quase todas as obras de Ionesco, inicia-se em um dia absolutamente normal, ao meio-dia de um domingo de verão, numa cidade do interior, enquanto conversavam dois amigos, Jean e Bérenger, sentados que estavam em uma mesa no terraço de um café.

Bérenger, um homem solitário, com o ar sempre cansado, sonolento e bocejante, diz ao amigo que não consegue se habituar com a vida: “Não, não me habituo com a vida. A vida é um sonho. Viver é uma coisa anormal. Estou cansado. Há muitos anos que me sinto cansado. Custa-me a suportar o peso do meu próprio corpo. Sinto pouca força para aguentar a vida. Talvez também não tenha muito interesse nisso. A solidão pesa-me. E a sociedade também.”

Jean contesta-o: “A vida é uma luta e quem não combate é covarde!”

– “Que é que você quer? Eu estou desarmado”, responde Bérenger.

– “Arme-se, meu caro, arme-se”, retorquiu o amigo.

– “E onde encontrar as armas?”, pergunta, então, Bérenger.

– “Em você mesmo, pela sua vontade. As armas da paciência, da cultura, as armas da inteligência. Torne-se um espírito vivo e brilhante. Ponha-se a par das coisas, dos acontecimentos literários e culturais de nossa época. Aproveite o pouco tempo livre que você tem. Não se entregue. Sempre se encontra tempo. Nunca é tarde demais. Visite museus, leia revistas literárias, assista conferências. Isso acabará com suas angústias e lhe formará o espírito”, responde-lhe Jean.

Enquanto os dois amigos conversavam, eis que surge, “desabalado, raspando as vitrinas”, um enorme rinoceronte, levantando a poeira da rua e esmagando o gato da Dona de Casa, uma das personagens do Ato I. Nada obstante o inusitado, eles continuam a conversa, ainda que surpresos, sem imaginarem que não se tratava apenas de uma mera e inexplicável aparição de um enorme paquiderme, mas sim de uma enfermidade terrível que, em pouquíssimo tempo, alastrar-se-ia por toda a cidade, atingindo a todos, menos a Bérenguer, o único que se manteve gente.

Como se vê depois, todos os habitantes da cidade, um por um, vão, gradual e inexplicavelmente, transmutando-se no animal, desde aqueles mais céticos (como o negacionista Botard), aos mais conformados (como o intelectual e jurista, Dudard) e até os moralistas e vaidosos (como o próprio Jean).

O único a resistir e escapar da metamorfose é justamente Bérenger, aquele homem solitário, desleixado, tímido, generoso, humilde e, talvez, alcoólatra[2]. Quando ele percebe que estão todos se transformando em rinocerontes, dá-se conta de que, na verdade, “muito simplesmente não tinha refletido sobre esse perigo, nunca tinha pensado sobre o assunto.” Era tarde demais!

Todos se transformaram em rinocerontes, até a sua amada Daisy. Todos sucumbiram à doença, inclusive os negacionistas de então. Sim, pois na peça de Ionesco havia também os estúpidos que negavam a doença (a rinocerontite), tal como se fora um Trump de hoje, negando a gravidade da Covid-19.

O estúpido de Ionesco chamava-se Botard, um velho professor primário, já aposentado, “que sabia e compreendia tudo.” Ao ler, por exemplo, as notícias do jornal que informavam sobre a aparição na cidade do paquiderme que esmagara um gato, vociferou: “Não acredito nos jornalistas, são todos uns mentirosos, tenho as minhas opiniões e só creio no que veem os meus próprios olhos. Foi talvez muito simplesmente uma pulga esmagada por um rato e agora fazem disso uma coisa do outro mundo. Ora, está se vendo que são boatos! Na nossa região nunca se viram rinocerontes! Psicose coletiva é o que isso é!”

Vê-se como algo parecido ao se comparar, hoje, a Covid-19 com uma gripezinha ou um inofensivo resfriado. Botard, portanto, lembra uns certos paquidermes atuais, que negam a gravidade do novo coronavírus e minimizam a pandemia. Segundo ele, criticando agora as faculdades e a universidade em geral, “o que faltavam aos universitários são as ideias claras, o espírito de observação e o senso prático. Os universitários são espíritos abstratos que ignoram tudo da vida.”

Como se vê, o velho Botard também lembra os estultos atuais que querem acabar com as universidades brasileiras, as ciências humanas, que desprezam o conhecimento acadêmico e que desejam um país medíocre e de gente ignorante. Gente burra que não sabe nem sequer do que se tratou o AI-5. Diz ele, ainda: “O vosso rinoceronte é um mito, exatamente como os discos voadores! Isso é uma mistificação! Isso é uma conspiração infame!”

Pois vejam, então: na cidade imaginária de Ionesco, também havia os adeptos das teorias da conspiração, algo como hoje, por exemplo, dizer que o novo coronavírus foi propositadamente criado em um laboratório pelos chineses e espalhado por eles, a fim de comprometer a economia mundial e, ao final, beneficiá-los. Aqui no Brasil, até ministro de Estado e deputado federal já o disseram: são os Botard tupiniquins, “ressentidos e com complexo de inferioridade, que só dizem frases feitas, lugares comuns…”

Na fabulosa história de Ionesco há também o Senhor Papillon, o chefe do escritório da empresa onde trabalham Botard, Bérenguer, Dudard e Daisy. Ele, tal como alguns de hoje também, preocupa-se menos com a doença do que com os empregos perdidos pelo rinocerontite. Ao saber, por exemplo, que um de seus empregados agora era um rinoceronte, preocupou-se apenas com a vaga, e não com o doente: “Tenho um empregado a menos. Preciso arranjar outro. E o trabalho! Vai ser preciso recuperar o tempo perdido. Mesmo assim será preciso voltar ao escritório, hoje à tarde.”

E, dirigindo-se à sua secretária, determinou: “Telefone-me amanhã cedo, senhorita. Virá bater a correspondência em minha casa.” Para Bérenguer, e para os demais, disse-lhes: “Chamo a sua atenção para o fato de que não estamos em férias; retomaremos o trabalho logo que for possível. Os senhores me ouviram?”

Um deles protestou: “Evidentemente, nós somos explorados até a alma.” Quando chegaram os bombeiros, o chefe inescrupuloso preocupou-se primordialmente não com as pessoas, mas com os documentos: “Cuidado com as pastas. Cuidado com os papéis! Dudard, feche o escritório a chave.” Mal sabia ele que seria também atingido pela doença, pouco depois.

Lembra-se do velho professor Botard, o negacionista estúpido, “deformado pelo ódio contra seus chefes, por um complexo de inferioridade, cuja segurança era apenas aparente”?

Pois bem, ao se deparar com a realidade da “epidemia”, negou cinicamente o seu ceticismo inicial: “Eu não nego a evidência rinocérica. Nunca neguei. Só queria saber até onde aquilo podia ir. Quanto a mim, sei o que devo pensar. Eu sei o porquê das coisas, conheço muito bem os subterrâneos do fato. E também conheço os nomes de todos os responsáveis, os nomes dos traidores. Eu não sou bobo. Hei de denunciar o objetivo e o significado desta provocação! Hei de desmascarar os provocadores! Só as crianças é que não compreendem; e os hipócritas fingem não compreender. Eu tenho a chave dos acontecimentos… um sistema de interpretação que nunca falha. Irei visitar as autoridades competentes para esclarecer este falso mistério.”

Vejam aí o teórico da conspiração, um terraplanista…

Quanto a Jean, o amigo orgulhoso de Bérenguer, obviamente também adoeceu, nada obstante afirmar, já enfermo de rinocerontite, que era “muito são, de corpo e de alma. Minha hereditariedade… Não preciso de médico. Eu me trato sozinho. Os médicos inventam doenças que não existem. Eles inventam as doenças! Só tenho confiança nos veterinários. Cada um faz aquilo que quer!”

Vejam, ele se achava imune e, nada obstante, adoeceu também, virou um paquiderme, em nada adiantando o seu histórico hereditário. Este é um caso também parecido com alguns idiotas atuais que minimizam a Covid-19, em razão de uma suposta superioridade física e etária.

Ao visitá-lo já doente, Bérenguer afirma que os homens têm “uma filosofia que os animais não têm, um sistema de valores insubstituível! São séculos de civilização humana!” Jean responde-lhe, revelando de uma vez por última a sua condição de rinoceronte: “Derrubemos tudo isso! Assim ficaremos melhor! O homem… Não diga mais essa palavra! O humanismo caducou! Você é um sentimetalão ridículo.”

Na pequena cidade, em pouco tempo, já era “um mar de rinocerontes, um bando enorme na rua, um pelotão a desembestar pela avenida abaixo!”

Já em uma conversa derradeira com Dudard, diz Bérenguer: “Por mim, só de os ver, fico perturbado. É uma coisa nervosa. Não fico com raiva, isso não… Não se deve ficar com raiva, porque isso pode levar muito longe. Faço tudo para não ter raiva. Mas eu sinto uma coisa aqui que me aperta o coração. Eu me sinto solidário com tudo o que acontece. Eu participo… Não consigo ficar indiferente.”

E, como se falasse de um Brasil de hoje, quando nos deparamos com uma tragédia e com tanta gente sem competência, sem escrúpulos, falsos patriotas, verdadeiros canalhas, eis o que se lê em Ionesco, desde a fala de um homem comum, sentindo-se acuado por uma pletora de paquidermes em sua volta:

– “Se isso tivesse acontecido fora daqui, num outro país, e eu tivesse tomado conhecimento pelos jornais, poderia discutir calmamente sobre o assunto, estudá-lo sob todos os seus aspectos e tirar objetivamente todas as conclusões. Organizaríamos debates acadêmicos, faríamos vir sábios, escritores, juristas, mulheres sábias, artistas. E também gente do povo, para tornar o assunto mais interessante, apaixonante, instrutivo. Mas quando você mesmo foi tomado de perto pelos acontecimentos, quando você, de repente, foi posto diante da realidade brutal dos fatos, não se pode deixar de se sentir atingido diretamente. A surpresa é violenta demais para mantermos o sangue frio. Por mim estou surpreso! Não me conformo. Não consigo me habituar. Talvez seja errado, mas eles me preocupam a tal ponto que não consigo dormir. Estou sofrendo de insônia. Se durmo ainda é pior. Sonho com isso, tenho pesadelos.”

Bérenguer não aceitava aquela situação que passou a viver a sua cidade e o seu povo, não podia aceitar a ideia de que se tratava de uma fatalidade. Quando Dudard disse-lhe que considerava um “absurdo ficar desvairado por causa de algumas pessoas que quiseram mudar de aspecto, que estavam no seu direito, que eram livres…”, comparando-o, inclusive, a Dom Quixote, respondeu-lhe:

– “Isso é fatalismo. É preciso cortar o mal pela raiz. Estou muito angustiado. Eu creio na solidariedade internacional. Um homem que vira rinoceronte, isso é indiscutivelmente anormal. E dizer que o mal partiu daqui!”

Daisy, assustada, observa que os rinocerontes proliferam. Há doentes em todos os espaços, nas igrejas (o cardeal de Retz), na aristocracia (o Duque de Saint-Simon), “e outros mais, muitos outros. Talvez 1/4 dos habitantes da cidade, e o que complica mais as coisas é que cada um tem, entre os rinocerontes, um parente, um amigo.”

Aqui no Brasil, como se sabe e dizem as pesquisas, os paquidermes chegam a um 1/3, mas preocupam da mesma maneira que receava Daisy. Para ela, conviver com os rinocerontes era “uma questão de hábito. Já ninguém se preocupa com os bandos de rinocerontes que percorrem as ruas, a toda velocidade. Quando eles passam, as pessoas afastam-se e depois retomam o seu caminho, continuando os seus negócios, como se nada tivesse acontecido.”

Nada obstante, Bérenguer afirma que “ainda somos a maioria e é preciso agir antes de nos afundarmos. Deveriam agrupá-los dentro de grandes cercas e obrigá-los a ficar sob vigilância. Como é que se pode ser rinoceronte? É inimaginável! Pois, apesar de tudo, eu juro que não abdicarei, eu não abdicarei! São horrendos!”

– “Ah! não, eu não consigo me habituar. Às vezes fazemos o mal sem querer, ou então deixamos que o mal se propague. Eles estão loucos. O mundo está enfermo e eles estão todos doentes. Eles não podem nos entender. Eles não têm linguagem! Ouve… você chama isso de linguagem?”, disse ele a Daisy.

E, depois, virando-se para Dudard (que já admitia a normalidade da doença, como se fora uma chuva que a todos, mais cedo ou mais tarde, ia molhar), lamentou: “Como é que você, um jurista, pode afirmar que… O homem é superior ao rinoceronte. Não, o seu dever é de… você não conhece o seu verdadeiro dever… o seu dever é de se opor a eles, lucidamente, firmemente.”

Como se vê, a fábula de Ionesco repete-se no Brasil, como mostram os diálogos fantásticos acima transcritos. Que sejamos, então, cada um de nós, o Bérenguer de Ionesco, resilientes e firmes na convicção de que a humanidade será salva, nada obstante os paquidermes que surgem de quando em vez na história.

Post escriptum: em um determinado trecho da peça, num diálogo entre o Senhor Papillon, Dudard e Botard, eles tratam do racismo, o que mostra, mais uma vez, a contemporaneidade de Ionesco: “O racismo aqui está fora de questão. O racismo não está em causa”, diz o Senhor Papillon.

– “Peço desculpas, chefe, mas o senhor não pode negar que o racismo é um dos grandes erros deste século”, retrucou Botard. E, dirigindo-se para o colega que acabara de minimizar o tema: “Senhor Dudard, isto não é assunto de pouca importância. Os acontecimentos históricos já nos provaram que o racismo… Nunca se deve perder a oportunidade de o denunciar.”[3]

Post escriptum 2 (antes que eu me esqueça): “Nasci em 1963, não sei nem o que é AI-5, nunca nem estudei para descobrir o que é. A história que julgue. Isso é passado, acabou.” (General Eduardo Pazuello, ministro interino da Saúde).[4]

Post escriptum 3 (ainda em tempo): Relatos de pessoas que visitaram Jair Bolsonaro depois da explosão da epidemia de Covid-19 no Brasil descrevem momentos de tensão. O presidente se recusava a usar máscaras, o que induzia convidados a seguir o exemplo. Fazia questão de se aproximar para cumprimentar com um aperto de mão. Ao perceber que o visitante estava tenso, dizia que aquele medo era besteira. O presidente chegava a brincar com funcionários, perguntando quem usava máscara e dizendo que aquilo era “coisa de viado”.[5]

 

[1] IONESCO, Eugène. O Rinoceronte. São Paulo: Abril Cultural, 1976. Esta peça foi encenada pela primeira vez no Brasil em 1961, interpretada por Walmor Chagas (que também a dirigiu), Jô Soares, Lélia Abramo e Benjamin Catan.

[2] Sobre a bebida, dizia ele ao amigo Jean: “Eu não gosto muito de álcool. E, no entanto, se não bebo, não me sinto bem. É como se eu tivesse medo… então bebo para não ter mais medo. Não sei bem como explicar. São umas angústias difíceis de definir. Não me sinto à vontade na vida… no meio das pessoas… então, recorro ao álcool. E isso me acalma, me descontrai, me faz esquecer. Ainda não me habituei comigo mesmo. Eu não sei se eu sou eu. Mas basta beber um pouco, o fardo desaparece e eu me reconheço, eu me torno eu mesmo.”

[3] A propósito, hoje, além das áreas das ciências sociais, como a sociologia, estudos econômicos também evidenciam que o racismo é e gênese de processos que prejudicam os negros em várias esferas da vida no Brasil. Exemplo: por que pretos e pardos adultos ainda ganham menos do que os brancos e ocupam tão poucos cargos de chefia? E por que, embora sejam 55,8% da população, eles representam apenas 24,4% dos deputados federais do país? Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/07/pesquisas-economicas-avancam-e-apontam-como-racismo-perpetua-fosso-social.shtml. Acesso em 19 de julho de 2020.

[4] Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/em-entrevista-pazuello-fala-de-acusacao-de-genocidio-e-rumor-de-demissao/?fbclid=IwAR1luBAuQ5QywuXyJ9ZEkJEf70oSjW0WGJ4nvr4VeVLWWOhcDyb0HW0rQ8g. Acesso em 19 de julho de 2020.

[5] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2020/07/mascara-e-coisa-de-v-dizia-bolsonaro-na-frente-de-visitas.shtml?fbclid=IwAR09JJtY4eE99gRaDouQvhkHhwQb6EPRPQBStSCKBAw-BDW_lR8iR2-Ei_k.  Acesso em 19 de julho de 2020.

 

* Rômulo de Andrade Moreira – Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado da Bahia, membro fundador do Coletivo Transforma MP e Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS

De que olhos você se veste para escutar as ruas?

Por Cristiane Corrêa de Souza Hillal no GGN

Há um ano, naqueles tempos em que só usávamos máscaras invisíveis, vesti minha máscara de Promotora de Justiça para conhecer o trabalho do Consultório na Rua do SUS.

Descobri que, dentre muitas competências, os profissionais do SUS também sabiam escutar olhos.

Toda terça feira de manhã, no centro de Campinas/SP, médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, um professor de capoeira violeiro e um DJ de baile funk chegavam em uma van e montavam uma barraca na praça para escutar olhos.

Iraneide trouxe olhos de festa para ouvirem.

Contornados por uma sombra verde limão, seus olhos refletiam o florido da roupa e o rosa cintilante do batom.

Foi difícil acreditar no seu prontuário: “mulher do saco”.

Vagando como assombração nas noites frias das ruas, a mulher do saco causava asco. Agredia, xingava e aterrorizava quem passasse por ela e seu saco vazio. Mal cheirosa, suja e embriagada, ela ostentava uma ferida aberta no ventre cheia de bichos. “Conhece a expressão tripas pra fora?”, me perguntou a médica. “Era isso. Tripas e bichos…”.

Foram dias até que a equipe do Consultório na Rua, finalmente, traduziu os olhos de Iraneide. Nesse dia, a equipe parou de ser agredida e conseguiu se aproximar. Os olhos falavam que ela não era vazia como o saco que carregava e que os bichos, que se alimentavam de suas feridas, eram vida. As únicas vidas amigas que precisavam dela. Quando a equipe desistiu de matar seus bichos, Iraneide reviveu. A pomada que usavam na sua barriga, agora, era para “alimentar” os bichos e a cirurgia iria “guardá-los”. Iraneide cedeu. Sabia que nem os vermes mereciam a solidão de uma noite fria na rua. Com os bichos costurados dentro dela, protegidos, aquecidos e cuidados, pôde abandonar o saco vazio. Tomou banho. Ganhou escova de dente e reencontrou o quarto quentinho que tinha abandonado. Um dia, ganhou estojo de maquiagem da enfermeira.

Foi aí que fosforesceu. Com olhos de festa.

Os olhos da Joana eram de névoa. Há duas semanas, perto da data em que fez 18 anos, saiu o resultado do seu exame de sangue: HIV positivo. “E por que ela veio aqui hoje?” Perguntei, surda aos seus olhos. O prontuário que estava sendo preenchido me respondeu: “Tristeza. Foi recebida com abraços pela equipe”.

Não há necessidade de voz para falar e ser ouvido pelo Consultório na Rua.

Nome, documento, nexo, voz, endereço…. nada disso é exigido.

Piu Piu, com olhos de vidro quebrado, apontou a bolha de pus da perna. O moço sem nome, com olhos de urgência, arrastou outro, com olhos fechados, e o sangue da testa aberta gritou por eles. A mulher maltrapilha, de olhos de espera, fez gestos repetitivos e ganhou água mineral gelada e soro.

Engana-se quem pensa que olhos são silenciosos.

Tiago, da equipe de saúde, é violeiro, professor de capoeira e leitor de notas musicais em olhos de inchaço. “Já carreguei muita gente pro samba da rodoviária. Lá precisa ensaiar uma hora, pelo menos, sem álcool e drogas, e já gravamos dois CDs”, me disse ele, com olhos de sol.

Com água, violão e medicamentos, o Consultório na Rua do SUS diminuiu brutalmente as doenças sexualmente transmissíveis da população em situação de rua, a gestação indesejada de meninas e mulheres dependentes químicas e resgatou a dignidade de muitas vidas que buscam soro, exames, música, contraceptivos, curativos, água gelada e abraços.

Um ano depois, em plena pandemia COVID 19, a van do Consultório na Rua segue escutando olhos que máscara alguma, visível ou não, pode emudecer.

Com todas as precauções possíveis e em um contexto político que, além de sufocar drasticamente os investimentos no SUS e SUAS, menospreza a tragédia das cerca de 80 mil vidas perdidas neste país, a equipe se desdobra, com risco pessoal,  para poupar os mais vulneráveis da desgraça de um vírus que lhes tiraria um dos únicos bens que possuem: o ar.

Depois de conhecer, na rua, olhos de festa, névoa, vidro, urgência, espera e sol, fica difícil escolher os olhos que suportam ouvir a conversa entre Bia Doria, primeira-dama do Estado de SP e Presidente do Conselho do Fundo Social e a socialite Val Marchiori, divulgada em rede social pela própria socialite no início desse mês de julho.

Entre risos e “hellos” da amiga, a primeira dama pediu que as pessoas parassem de dar alimentos para quem está na rua com fome e explicou que a população em situação de rua gosta de ficar na rua. “Querem comida, roupa, uma ajuda… mas não querem cumprir regras”, disse Bia, com seus olhos de vazio. “Estou passada”, respondeu a amiga de olhos de cimento, e completou: “eu mesma tenho obrigações… pago contas”.

O discurso maniqueísta e simplório, que culpabiliza o miserável por sua desgraça e o afasta das supostas virtudes de uma elite que estaria onde está por mérito e não por privilégios, não nubla apenas os olhos das duas senhoras brasileiras.

É o sentido comum de ódio que nos estrutura socialmente. É o grito do Desembargador, em Santos, ao Guarda Municipal, quando recebe a orientação para usar máscara: “Seu analfabeto”, diz ele, com seus olhos de esgoto.

Eis nosso saco vazio. Nossa bolha de pus. As nossas tripas pra fora. Os bichos que alimentamos quando fugimos da nossa história escravocrata e damos poder a quem só conhece a linguagem da violência.

Por isso precisamos de SUS. O SUS é mesmo tão universal que quando fosforesce os olhos de Iraneide e os faz festa, mata os vermes que habitam o ventre de todos nós.

O SUS é mais que cuidado de saúde física e mental. Ele é a narrativa de uma política de acolhida e solidariedade. É resistência. Afirmação de vida e inclusão. Ele é a rua da partilha onde se oferece marmita, água, música, remédio e abraço.

O SUS são olhos que escutam.

 

Cristiane Corrêa de Souza Hillal: Integra o Ministério Público do Estado de São Paulo (Promotora de Justiça de Campinas) e o Coletivo Transforma Ministério Público.